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A minha primeira máscara de Carnaval era uma caveira, para meter medo. A imagem da morte é o mais antigo disfarce inventado pelo homem para festejar o Entrudo, gozar a vida e exorcizar os medos. Temos medo da morte, e fugimos à conversa. Caro leitor, esteja à vontade para me deixar aqui.
Acontece que há gente digna que deseja a morte. Com dignidade. E também mudamos de assunto. Uns suicidam-se, e o número desses tem vindo a aumentar. Outros nem disso são capazes, porque o corpo deixou de obedecer, moribundos entregues aos mistérios últimos do sofrimento e da dor.
Antes, num tempo que já não é nosso, morria-se em casa. Em casas que, mesmo tugúrios, acolhiam três gerações, pais, filhos e avós. E convivia-se com a morte desde pequeno. Agora, na vida que inventamos para nós, vamos morrer nos hospitais ou, quando a medicina esgotou soluções para nos prolongar uma vida razoavelmente digna, mandamo-nos (a nós e aos que amamos) morrer cada vez mais longe, nas unidades de cuidados paliativos terminais. Aí, onde gente boa e profissional nos trata do assunto da morte que procuramos ignorar.
Para contrariar o tabu e abrir a conversa, mais de 100 figuras públicas acabam de criar o movimento "Direito a morrer com dignidade", com o lançamento de um manifesto a defender a eutanásia e o suicídio medicamente assistido. Foi ontem, no Porto. Entre os que assinam o manifesto, que há de ser convertido em petição para debate público, estão o investigador Alexandre Quintanilha, o psiquiatra Júlio Machado Vaz, o nefrologista João Ribeiro Santos, o cineasta António Pedro Vasconcelos e a investigadora Laura Ferreira dos Santos, autora de vários livros sobre esta matéria. Consideram que, tal como o direito à vida, o direito à morte é um direito fundamental. E que as pessoas em pleno uso das suas faculdades mentais, mas perante um sofrimento profundo ou uma doença incurável, devem ter liberdade de escolha, que pode ser também a liberdade para decidir morrer.
Temas como a morte assistida, a eutanásia (do grego boa morte), ou o suicídio assistido continuam a bater no poste da nossa dormência, do preconceito, da inércia da tradição moral ou religiosa, mas também do Código Penal. E é por aqui que o debate deve começar. Porque, defende o manifesto, "é assunto da consciência de cada um, decisão íntima e pessoal, na qual o Estado não tem direito a intervir".
A proposta invoca a liberdade de escolha e a dignidade que devemos a todos e a cada um. Ignorar o debate seria prolongarmos a hipócrita invenção da mesma máscara, que não a de Carnaval, para escondermos e exorcizarmos o medo e o preconceito.