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Nem sempre será simples delimitar as fronteiras do jornalismo, mas é inequívoco aquilo que lá não deverá estar. Dois exemplos daquilo que os jornalistas deveriam expelir do seu trabalho: o enredo em torno do dinheiro que a cantora Maria Leal terá subtraído à fortuna herdada pelo seu ainda marido e as sucessivas cartas que Rosa Grilo, a viúva do triatleta Luís Grilo, escreve a partir da prisão. Eis dois casos sem relevância noticiosa que subitamente saltaram para o topo dos alinhamentos noticiosos num tempo em que o entretenimento volta a contaminar a informação.
Na entrevista concedida há alguns dias ao Jornal da Noite da SIC, a cantora Maria Leal apresentou-se em cena com uma narrativa previamente preparada para debitar perante as câmaras. Os jornalistas lá iam fazendo as perguntas que pensavam ser pertinentes para se perceber o que estava em causa, mas a artista de variedades não se desviava do seu elementar guião. Quando se julgou incapaz de repetir a sua versão, interrompeu abruptamente a conversa, dizendo aos jornalistas que não se prestaria a qualquer julgamento que eles porventura quisessem ali fazer. Isso seria feito nas instâncias próprias perante um juiz, como fez questão de sublinhar. A novela haveria de continuar com a versão do marido e teria sucessivas réplicas em vários média noticiosos. O que ressalta deste caso? Apenas a queixa de um homem que diz ter sido burlado por uma mulher que lhe terá gasto o dinheiro de uma herança. Haverá por aí situações idênticas, mas esta apresenta um certo atrativo: a parte acusada é uma personagem do mundo do espetáculo, permeável a qualquer encenação. Ora, o jornalismo parece cada vez mais interessado em entreter audiências, mesmo que para isso tenha de desbaratar a sua identidade.
Paralelamente às tropelias de uma cantora que muitos de nós apenas agora descobriram, emerge nos média uma outra figura feminina. Sinistra para quem a olha a partir dos títulos das notícias que sobre ela se produzem. Essa mulher, viúva de Luís Grilo, também já teve direito a uma entrevista televisiva, desta vez no noticiário da TVI, para contar a sua versão da morte do marido. Fez isso antes de ser detida. Agora, na prisão, escreve cartas dirigidas a diferentes órgãos de comunicação sobre o seu (não) envolvimento nessa morte. E essas missivas lá vão sendo publicadas, como se fossem parte de um real que todos nós já percebemos que vai sendo mascarado a partir do estabelecimento prisional onde está detida.
Seriam esses casos desprezíveis que a justiça, a seu tempo, se encarregaria de julgar, não se desse o caso de estarem a suscitar a atenção do campo do jornalismo a ponto de, em determinados dias, saltarem para o topo dos alinhamentos dos principais noticiários televisivos. Não teremos nós, jornalistas e investigadores dos média, de refletir profundamente sobre os (perigosos) caminhos para onde estamos a atirar o jornalismo? Não nos sentiremos nós, consumidores de informação jornalística, envergonhados perante as opções que fazemos?
Todos sabemos que os média tradicionais continuam numa certa deriva. Os jornais impressos registam quedas substanciais nas vendas em banca e os canais generalistas enfrentam uma brutal descida nos índices de audiência. A via mais sedutora será entreter os públicos, mas não é seguramente a mais consistente. Pensemos nisto: que importância tem a vida privada de Maria Leal e as cartas de Rosa Grilo? Obviamente, nenhuma. Por isso, esses casos nunca poderiam fazer parte dos noticiários. Porque aí queremos ver factos de relevância para a vida de todos. Apresentados em ângulos atrativos, construídos através de narrativas que nos surpreendam e explicados por quem adote discursos puramente referenciais. As ficções devem estar noutros espaços. Para bem de todos.
*PROFESSORA ASSOCIADA COM AGREGAÇÃO DA UNIVERSIDADE DO MINHO