Não há indício mais flagrante do desvario que se apoderou de alguns dirigentes europeus - confrontados com a maior crise que alguma vez atingiu a União - do que a perversidade dos "lugares comuns" invocados para qualificar a situação presente e a sua dramática indigência.
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A "preguiça dos povos do Sul", que outrora serviu para justificar o esclavagismo e a colonização do continente africano, serve agora para exigir o pagamento de juros usurários a gregos, italianos, espanhóis e portugueses que, alega-se, "viviam acima das suas possibilidades". É certo, recorde-se, que até rebentar a bolha imobiliária nos EUA - o maior devedor do Mundo - a Banca estimulava o endividamento competindo entre si pela oferta dos empréstimos mais atrativos e que, ainda recentemente, todos exaltavam as virtudes infinitas do crédito.
Agora, a dívida foi "requalificada" e passou a designar-se por "dívida soberana", provavelmente por antítese da perda da soberania monetária dos estados que aderiram ao euro, vítimas das assimetrias provocadas pela adoção da moeda única sem a correspondente integração dos instrumentos financeiros e das políticas económicas adequadas.
Todavia, a "punição" prescrita pela velha dupla franco-alemã, de Merkel e Sarkozy, previa a redenção milagrosa dos devedores, pela estrita submissão às "políticas de austeridade". Os resultados são bem conhecidos. O que inicialmente foi descrito como a "exceção" grega, continuou a agravar-se, alastrou a Portugal e ameaça a Espanha e a Itália. Na Holanda, caiu um governo dependente do apoio da extrema-direita, na Alemanha, o partido no governo sofreu no passado domingo mais uma clamorosa derrota nas eleições da Renânia do Norte-Vestefália. Na França, o indispensável aliado das "políticas de austeridade" impostas na Europa, Nicolas Sarkozy perdeu também as eleições. Entretanto, na Grécia, a democracia enunciou, precariamente, os insondáveis paradoxos de ingovernabilidade.
Embora se tenha transformado na banalidade mais comum, é verdade que "as crises são uma oportunidade". Isto significa apenas que não sendo desejadas e muito menos desejáveis, também as crises acabam por passar e que cada um, de facto, constrói o seu próprio futuro, no presente. Não seria mais do que isto, o que o primeiro-ministro português terá pretendido dizer aos desempregados, como se aqui não houvesse, também, um terrível drama coletivo, um grave problema social e um sério desafio à governação. O "memorando de entendimento" com a troika, como todos bem se recordam, foi concluído à pressa e assinado a contragosto por um governo demissionário, sem margem negocial e com uma legitimidade democrática diminuída, na véspera de eleições antecipadas. Para compensar a evidente fragilidade desse compromisso, a principal força política da oposição - que iria vencer as eleições e formar o atual governo - declarou a sua adesão ao "memorando" e prometeu, com inusitado entusiasmo, que pretendia mesmo "ir além" dos compromissos que o governo cessante admitia com resignação. Não obstante, há quem tente agora confundir a necessidade incontornável de honrar os compromissos assumidos nesse "memorando" conjuntural, com a submissão fatal à leitura ideologicamente empenhada que dele faz a maioria governante, e quem pretenda continuar a excluir do debate político democrático a orientação até hoje hegemónica do defunto diretório europeu.
Mas enganam-se! Como sempre, as crises abrem múltiplas oportunidades. À direita e à esquerda, só os demagogos podem prometer para breve um futuro radioso mas convém não esquecer que o chamado "Estado de Bem-estar" emergiu da grande depressão dos anos 20 e que a "democracia social" europeia foi construída, pela esquerda e pela direita, sobre as ruínas da Segunda Guerra Mundial. Que não nos falte a ousadia indispensável para enfrentar os desafios, promover as mudanças... e prevenir novas catástrofes.