O que se está a passar este ano com a Fundação de Ciência e Tecnologia (FCT) é absolutamente inacreditável. Para órgãos importantes na definição das orientações setoriais foram nomeadas pessoas sem a qualificação necessária. Depois, as bolsas de investigação foram cortadas dramaticamente, embora a FCT garantisse que dispunha do mesmo nível de financiamento. Agora, da primeira fase de avaliação dos centros de investigação resultou o afastamento de um terço, com decisões escandalosas, quer na ignorância que revelam - caso, na minha própria área académica, do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia, CIES-ISCTE (a que não pertenço, mas conheço bem) - quer na súbita inversão de critérios anteriormente estabelecidos pela própria FCT - como Carlos Fiolhais já assinalou no domínio da Física, entre outros.
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Esta não é uma questão interna da comunidade científica.
Em primeiro lugar, a ciência e a tecnologia constituem hoje forças motoras do desenvolvimento económico. Perder aí valor é sacrificar as condições para uma alternativa realista a esta triste sina do empobrecimento para que fomos empurrados.
Depois, a investigação fundamental e aplicada constitui uma das áreas em que Portugal mais progrediu nos últimos anos, e mais conseguiu aproximar-se dos padrões europeus. Fazer agora marcha atrás é absurdo e irracional, porque significa desperdiçar o esforço recente e os recursos investidos. Além de que nenhum dos nossos concorrentes ficará parado à nossa espera.
Finalmente, pelo menos no que respeita às Humanidades e Ciências Sociais, a sua sistemática desvalorização, por supostamente menos "úteis", a lógica das nomeações para conselhos de topo, a distribuição dos cortes nas bolsas e, agora, as decisões de desclassificação de centros e as respetivas fundamentações, todas têm por base a combinação entre uma enorme ignorância e um claro enviesamento ideológico.
Havendo vários outros, o caso do CIES-ISCTE - que é um dos nossos melhores centros de investigação em sociologia - é paradigmático. Um dos argumentos para a miserável classificação que lhe é atribuída é que os estudos sobre migrações e sobre desigualdades sociais (nele, reconhecidamente, áreas fortes) "estão hoje esgotados", quer em termos "locais" quer em termos europeus. E uma pessoa só pode abrir a boca de espanto perante tal alarvidade. Esgotadas hoje, em Portugal ou na Europa, as questões colocadas pelas desigualdades? Pelas migrações? Onde vive esta gente?
Oproblema não está, como alguns dizem, na "ideologia da avaliação". Eu sou do tempo em que a academia vivia fechada sobre si própria, dividida por mandarinatos e paróquias, com pavor de tudo o que fosse inovação, cosmopolitismo e exigência. Posso testemunhar quão sombrio era esse tempo. O problema é a opção política contra a ciência fundamental, contra a análise crítica dos problemas do país, contra o pluralismo teórico, contra a investigação independente. O problema é o propósito político de desviar os recursos da ciência para a subsidiação encapotada de empresas. O problema é a pulsão de gente que é medíocre para destruir o que encontrou bem feito. Tudo isso se transmite depois em cadeia, até acabar nuns tristes avaliadores que falam do que não sabem e se pronunciam sobre o que não estudaram.
Prometi que esta coluna obedeceria a um tom de pedagogia cívica. Pois é mesmo esse tom que quero aqui invocar. Desde a iniciativa, há 130 anos, de Oliveira Martins, quando fundou a Biblioteca das Ciências Sociais, que sabemos, ou deveríamos saber, que a produção e disseminação de conhecimento científico e técnico sobre a realidade é uma condição essencial da nossa qualificação como sociedade. Mas o conhecimento é o contrário da ignorância e do preconceito. Se a ignorância e o preconceito tomaram conta da Fundação de Ciência e Tecnologia, como tudo o que ela vem fazendo leva a crer, então é preciso corrê-los de lá.
E já vai tarde.