Vamos lá ver: é sempre aborrecido dizer de supetão ao povo, dorido com a crise, que, neste ano, não poderá deleitar-se com os prazeres da carne (é esta a ancestral ideia ligada ao Carnaval, fruto da junção dos termos "carnis" - carne - e "valles" - prazeres). Passos Coelho, que decidiu não dar tolerância de ponto à Função Pública no dia de Carnaval, imitando assim Cavaco Silva, não deve saber que a festarola se perde no tempo - o Carnaval teve origem na Grécia, em meados dos anos 600 a 520 a. C.. Contrariar tão histórica celebração é, por isso, uma espécie de heresia.
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A heresia valeu a Passos vergastadas várias.
Exemplos.
O coordenador da Frente Sindical da Administração Pública, Nobre dos Santos, exortou os funcionários públicos a irem mascarados para o trabalho no dia de Carnaval. Uma palhaçada, portanto.
A sindicalista Ana Avoila, da Frente Comum, gritou que o Governo "anda o ano inteiro a brincar ao Carnaval". Uma brincadeira, portanto.
"Esta é uma medida inadmissível e que mostra a opção do Governo em castigar os trabalhadores com mais um dia de trabalho", entende, por seu turno, Arménio Carlos, novo secretário-geral da CGTP.
Já o PCP considera que a decisão de não atribuir tolerância de ponto é "acrescentar mais um dia de trabalho forçado e não pago aos trabalhadores". Escravatura, portanto.
E até o polido António Capucho, ex-presidente da Câmara de Cascais, entende que o Governo cometeu um "erro crasso": "Os nossos governantes têm de ter a noção de que, depois de cortarem quatro feriados, impedirem que as pessoas tenham um dia por ano para manifestarem a sua alegria, a sua descontracção, é disparatado". Argumento brilhante.
Há um pequeno pecado, digamos assim, no argumentário destes actores (e de muitos outros que, com toda a certeza, os seguem na crítica ao Governo). É o pecado da coerência. Que sentido faz andar a cortar feriados civis e religiosos, a pedir mais trabalho ao povo, a flexibilizar o mercado laboral para tentar criar mais emprego para, a seguir, dar tolerância de ponto a uma celebração que acontece a uma terça-feira? A festa não pode deslocar-se para o fim-de-semana anterior? Pode e deve. De resto, as localidades onde com mais fulgor se festeja o Carnaval fazem desfiles ao domingo e à terça.
É verdade que Passos Coelho comete um erro: devia ter avisado mais cedo, porque nos sítios em que a festa é mais rija os gastos estão feitos e porque muita gente já programou a sua vida a contar com o bónus daquela terça-feira. Mas isso não deve iludir o essencial: o esforço reclamado ao país não é compaginável com excepções deste tipo. Custa meter isto na cabeça. Custa romper com um estilo de vida em que decisões deste género não tinham cabimento. É verdade que custa. Ocorre que estes são os custos que estamos obrigados a pagar por termos acelerado alegremente contra a parede. A parede apareceu. Agora, o tempo é de outros carnavais.