1. Por vezes a realidade supera a ficção, sobretudo quando o Mundo se revela tão irracional, perverso e violento como hoje, dilacerado pela miríade de aberrantes conflitos que irrompem nos lugares mais improváveis.
Corpo do artigo
Num gesto de inesperada generosidade, Donald Trump não só prometeu ajuda alimentar e medicamentosa à Venezuela como se declarou disposto a recorrer às armas para cumprir os seus propósitos humanitários! Como podemos admitir tamanha benevolência vinda do mesmo Trump que permanece indiferente à fome e à miséria de milhares de latino-americanos acantonados junto à fronteira do México - precisamente onde teima construir um muro! - "gente" que ele sistematicamente denuncia como perigosos bandidos, como ameaça à segurança nacional, e que por isso é indispensável impedir que atravessem a fronteira? Será que os latino-americanos "bons" foram todos para a Venezuela onde se tornaram reféns do triste sucessor de Hugo Chávez? A escassez de medicamentos e de bens alimentares que agora tanto se deplora não é também o resultado previsível e desejado do longo bloqueio comercial imposto à Venezuela?
2. Há limites para a hipocrisia! A defesa da democracia e dos direitos humanos impõe sérios deveres à comunidade internacional mas precisa de ser credível para ser efetiva. Isto implica a solidariedade efetiva com as populações muçulmanas expulsas pelo Governo da antiga Birmânia, com as vítimas da guerra no Iémen, com os curdos, os sírios e o povo mártir da Palestina. Exige que se reparem os erros e se procure remédio para a situação caótica que a chamada "intervenção aérea europeia" criou na Líbia. Reclama a condenação enérgica da execução sistemática dos opositores ao regime militar no Egito. E obriga a Europa a reagir contra perigosas derivas em vários estados-membros, onde alterações constitucionais muito parecidas com aquelas que condenamos na Venezuela não suscitaram contudo uma reação minimamente apropriada à gravidade das ofensas contra o Estado de Direito Democrático - um valor fundacional da própria União Europeia!
A tão desejada era de um Mundo multilateral que acreditavamos ser possível instaurar, inspirados pelo desmantelamento pacífico da antiga União Soviética, nunca se concretizou. Na verdade, dissiparam-se gradualmente as ilusões dos que acreditavam que uma vez encerrado o capítulo do equilíbrio do terror e da guerra nuclear, estariam criadas as condições para o triunfo universal da paz, da democracia e dos direitos humanos. Pelo contrário, confirmamos penosamente os prognósticos dos mais céticos que anteviam, há 30 anos, como inevitável, o crescimento da anarquia na ordem internacional em beneficio, transitório, dos Estados Unidos da América. Sem a veleidade de conseguir o domínio exclusivo do Mundo, os EUA apenas se querem defender da concorrência, em especial, da República Popular da China, em maré ascendente. Para esta ambição "modesta", até Donald Trump parecia competente, apesar da perturbadora intimidade mantida com Vladimir Putin, submetida depois a minuciosa e continuada investigação. A Europa, que tinha conquistado o respeito dos povos pela afirmação autónoma dos valores que incorporaram a sua criação, quer nas relações com os vizinhos, quer nas políticas de cooperação com os países em desenvolvimento e na hospitalidade oferecida a todos os que a procuravam, essa Europa que conquistou o reconhecimento internacional parece agora desorientada e impotente.
A tremenda crise política, económica e social da Venezuela é real e deve de ser pacificamente resolvida pelos venezuelanos, com o apoio da comunidade internacional e sem ameaças de intervenção militar externa. A crise não pode ser usada como pretexto hipócrita para mais uma operação de mudança de regime que só promete mais miséria e sofrimento ao seu povo sacrificado. Depois da tragédia do Iraque ninguém se pode declarar inocente.
* Joan Baez, Where Have All The Flowers Gone
Deputado e professor de Direiro Constitucional