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1. Longe vão os tempos em que um secretário de Estado não era mais do que um "ajudante de ministro", de acordo com a definição de Cavaco Silva. E essa é a principal conclusão que há a reter no caso das offshore. Graças aos esclarecimentos prestados por Paulo Núncio, ex-secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ficámos a saber que, no que lhe diz respeito, os ministros das Finanças (Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque) foram, esses sim, verbos de encher. Pelo menos em matéria de fraude e evasão fiscal, o refulgente advogado - que voltou entretanto a trabalhar para o inimigo, ou seja, para os que tentam fugir ao pagamento de impostos, de forma criativa, mas legal - decidia tudo sozinho, sem prestar contas a ninguém. Os ministros eram, portanto, irresponsáveis (no bom sentido, se isso for possível). Na audição de ontem no Parlamento, ninguém lhe perguntou, mas presume-se que nem a Passos Coelho (que já sugeriu que não sabia de nada) prestaria contas. E assim se percebe melhor porque havia quatro portugueses ilustres cuja informação fiscal estava debaixo da proteção da chamada lista VIP (os alarmes da Autoridade Tributária disparavam quando algum funcionário zeloso se lembrava de dar uma olhadela): Cavaco Silva, Passos Coelho, Paulo Portas e... Paulo Núncio.
2. Outra das conclusões que é preciso reter é que, como qualquer político que conta, ou seja, como qualquer político com lugar cativo na placa giratória entre os negócios privados e os negócios do Estado, as explicações de Núncio variam com o tempo e tendem, também com o tempo, a fazer cada vez menos sentido. Repare-se que começou por apontar o dedo aos seus antigos subordinados, por não terem publicado os dados sobre transferências para paraísos fiscais. Agora, lidos entretanto alguns papéis que tinha lá por casa e consultado o Portal das Finanças, conclui que a culpa foi dele. O facto de entre as duas afirmações ter sido categoricamente desmentido por um antigo diretor-geral do Fisco não teve qualquer influência na evolução do seu pensamento. Mas o génio político deste homem que deu tanto ao país - segundo a ex-ministra Assunção Cristas, que nunca chegou a ter dignidade para integrar listas VIP - revelou-se verdadeiramente quando ontem explicou porque é que escondeu a informação dos portugueses: não quis beneficiar o infrator. Se a isso lhe acrescentarmos outras ideias que associou àquela, como a de que a "esmagadora maioria" das transferências para paraísos fiscais não só não são infrações como não geram qualquer tipo de imposto para o Estado, e temperando tudo com a declaração solene de defesa do "interesse público", estamos perante uma lógica indestrutível. Embora (e precisamente por isso é indestrutível) o único ser humano capaz de a perceber seja o próprio Paulo Núncio.
* EDITOR EXECUTIVO