O primeiro-ministro aproveitou as comemorações dos 40 anos do 25 de Abril para defender que "a democracia e a liberdade têm de ser regadas com muito cuidado todos os dias". Passos Coelho sabe do que fala. Nos últimos tempos tem sido ele o principal responsável pelo imenso sequeiro social em que Portugal se está a transformar. Que o digam os pensionistas sem dinheiro para medicamentos, os recém-licenciados obrigados a emigrar ou os desempregados. Aquilo que, para muitos, é um deserto, é para Passos uma espécie de oásis bem hidratado. Um "espaço de liberdade e democracia" que, nas palavras do chefe de Governo, "tem de se reinventar a cada dia que passa, porque senão deixamos as nossas comemorações a cheirar a bafio". Soou a recado sem destinatário definido, numa declaração a tresandar a mofo.
Corpo do artigo
Também cheirou a aviso a ideia defendida pelo presidente da República na sessão solene do Parlamento de que "Portugal enfrenta hoje grandes desafios (...) que não se esgotam na dimensão orçamental". Num discurso carregado de referências ao desemprego e aos reformados, Cavaco Silva considerou que "este é o tempo de lutarmos por um país mais desenvolvido e mais justo". Vá lá saber-se por que razão, o arauto da rega escutou e no final aplaudiu. Será que concorda?
Alista de recados que o presidente levou para o discurso de São Bento reservava um para os capitães de Abril, que àquela hora se juntavam ao povo no Largo do Carmo. Disse Cavaco que "o 25 de Abril não tem proprietários, nem deve servir de arma de arremesso na luta política". Mas o aparente puxão de orelhas aos capitães bem poderia ter tido outro destinatário, habilidosamente posicionado no hemiciclo. Durão Barroso, que à beira do fim do mandato europeu multiplica as aparições em Portugal, decidiu marcar presença no Parlamento, onde assistiu na galeria dos antigos presidentes da República à sessão que celebrou o fim da ditadura. No dia anterior, tinha sido demasiado evidente a 'selfie' em que se quis fotografado com jornalistas. Ontem, o ainda presidente da Comissão Europeia sentou-se de surpresa ao lado de Ramalho Eanes e Jorge Sampaio. Para onde corre Durão?
Na comemoração alternativa do 25 de Abril, Vasco Lourenço acusou a mensagem de Cavaco e exortou a que seja, "de preferência", o presidente da República a "apear" o Governo. No lugar onde Salgueiro Maia conduziu à rendição do regime fascista, o presidente da Associação 25 de Abril voltou a acenar com a possibilidade de agitação popular violenta, se a política de Passos não for alterada "urgentemente". Fica mal a quem nos devolveu a liberdade sem violência.
Cronista respeitado por muitos, Vasco Pulido Valente aproveitou uma entrevista ao jornal i, publicada justamente ontem, para dizer que "não devemos nada" aos capitães de Abril. A dívida "zero", de que Pulido Valente fala, para com quem fez a revolução é sustentada pela sua convicção de que "os tipos só sabiam vagamente o que estavam a fazer". E detalhou: "O Melo Antunes era um imbecil". Ficamos a saber a quem nada deve Vasco Pulido Valente e também a quem devemos nós a liberdade de poder ler as alarvidades que se dizem por aí.