O antropoceno e o triângulo virtuoso da economia criativa
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No regime geoclimático do antropoceno, essa maravilhosa criação distópica da raça humana, estamos obrigados, para assegurar a nossa sobrevivência, a reinventar e recriar as hiperligações entre economia ecológica, economia digital e economia criativa, o triângulo virtuoso do desenvolvimento sustentável dos territórios e, em especial, o modo como esses três vetores migram para o interior das cadeias de valor produtivas e, assim, pensamos nós, contrariem e combatam os impactos mais negativos do antropoceno. Esta associação triangular virtuosa aumenta a visibilidade e utilidade de recursos que até aí estavam expectantes, e, agora, uma vez convertidos em ativos estão, finalmente, disponíveis para promover o desenvolvimento dos territórios.
Neste triângulo virtuoso de combate aos impactos do antropoceno, a economia ecológica representa os elementos pré-existentes, o património e a paisagem, e administra a base de partida em matéria de biodiversidade, estruturas ecológicas e serviços de ecossistema. A economia digital tem uma função mais instrumental, de planeamento analítico, plataforma de interface e realidade aumentada e virtual. A economia criativa, por sua vez, administra os elementos inovadores de ciência e tecnologia, assim como a sua articulação criativa com os elementos artísticos e culturais em sentido amplo.
Numa perspetiva mais analítica a política de combate contra as alterações climáticas do Antropoceno é processada em três tempos ou velocidades – mitigação, adaptação, transformação – conduzidos em simultâneo no curto, médio e longo prazo, mas, obviamente, com efeitos diferidos nos três horizontes temporais. No mesmo sentido, o triângulo virtuoso antes referido irá mover-se nesse contexto a três velocidades, razão pela qual é fundamental assegurar o modo como a economia ecológica, a economia digital e a economia criativa podem contribuir para esse combate contra as alterações climáticas. Vejamos, então, esse nexo de causalidade e algumas das suas principais dimensões:
- A economia ecológica, no que se refere à mitigação de curto prazo, propõe-nos a descarbonização, as energias limpas e a eletrificação das atividades económicas; na adaptação de médio prazo oferece-nos novas métricas de circularidade e sustentabilidade ambiental e na transformação mais estrutural de longo prazo sugere-nos, por exemplo, novas abordagens de ordenamento, ecologia da paisagem e planeamento territoriais como os mosaicos paisagísticos, as ações integradas de gestão paisagística e os bio parques;
- A economia digital, no que se refere à mitigação de curto prazo, propõe-nos inúmeros dispositivos de digitalização da informação e outros tantos dispositivos de vigilância e alerta; na adaptação de médio prazo oferece-nos vários sistemas de georreferenciação e múltiplos dispositivos e instrumentos de precisão, mais automáticos e/ou mais autónomos; na transformação de mais longo prazo a economia digital sugere-nos soluções de inteligência artificial, sistemas autónomos e formas mais avançadas de computação como a computação quântica;
- A economia criativa, no que se refere à mitigação, sugere-nos a mudança de comportamentos através de melhor informação, educação e formação que, por exemplo, as artes do ambiente podem facilitar; em matéria de adaptação, a investigação em nanotecnologias, engenharia genética e biomateriais abre-nos universos até agora desconhecidos para a indústria e agricultura, enquanto no longo prazo da transformação estrutural tudo pode acontecer nos campos da geodiversidade e da biodiversidade, não apenas através de novas tecnologias e engenharias de combate contra as alterações climáticas como, também, de diferentes utilizações e aplicações da computação quântica; em todos os casos, as artes e a cultura da economia criativa, através das suas transfigurações e representações, irão ajudar-nos a lidar com o risco e a complexidade, o dramatismo e a tragédia das alterações climáticas.
Vejamos alguns exemplos onde esta triangulação virtuosa pode funcionar, em associações de geometria variável, é certo, mas sempre adotando uma perspetiva diferente de olhar para o território e operacionalizando recursos e ativos até aí invisíveis e disfuncionais. Eis os exemplos:
- Para efeitos de programação e planeamento de uma comunidade intermunicipal ou região, podemos abordar, de forma integrada, os sistemas agroalimentares locais (SAL), os sistemas agroflorestais (SAF), os sistemas agropaisagísticos (SAP) e os sistemas agroturísticos (SAT); desta forma, aumentamos a escala e interatividade das economias de rede e aglomeração e, no final, a empatia e sociabilidade dos territórios-desejados;
- A economia ecológica atribui uma atenção redobrada aos recursos que estão em perigo ou, mesmo, em vias de extinção, pelo menos em certas regiões críticas, como é o caso dos recursos hídricos, os solos, a biodiversidade, a qualidade do ar, os serviços de ecossistema, a saúde pública; por sua vez, a economia digital aumenta a vigilância e sinaliza através dos seus dispositivos enquanto a economia criativa multiplica os seus
instrumentos científicos e tecnológicos sem esquecer, por exemplo, os meios criativos utilizados pelo ativismo socioambiental para alertar para estes riscos e perigos;
- O triângulo virtuoso aumenta o número de soluções e novas métricas de economia circular e sustentabilidade socioambiental e faz crescer, por exemplo, o número de patentes de inovação agroecológica e agroalimentar, assim como o número de startups que são incubadas em centros de investigação e laboratórios colaborativos em meio rural;
- O triangulo virtuoso pode contribuir para aumentar o número de empreendimentos de fins múltiplos, por exemplo, em áreas de baixa densidade e, assim, facilitar a formação de economias de rede e aglomeração, como é o caso do parque agroecológico municipal ou intermunicipal; a formação de uma bio região e o programa integrado que daí decorre é, igualmente, um bom exemplo de empreendimento de fins múltiplos;
- O triangulo virtuoso pode, igualmente, contribuir para transformar produtos convencionais em mercados de nicho e em cadeias de valor mais complexas, como expressão de alguns signos territoriais e paisagísticos, como já o caso em certas áreas do enoturismo e do turismo em espaço rural; a articulação entre as áreas de paisagem protegida como os parques naturais, os produtos com denominação de origem protegida (DOP) e o turismo de natureza proporcionado pelas amenidades paisagísticas dessas áreas protegidas, é mais um bom exemplo desta associação triangular virtuosa que as plataformas digitais colocam à disposição da economia mundo;
- Este triangulo virtuoso pode, ainda, ser observado em circuitos científico-turísticos no quadro de projetos de investigação transnacionais, cujas equipas utilizam residências científicas e artísticas de âmbito académico e aí praticam com frequência o turismo de natureza; o estudo científico e técnico dos endemismos locais, espécies em vias de extinção e espécies exóticas e invasoras é um bom exemplo desta aplicação que mistura investigação científica, turismo de natureza e artes da paisagem;
- As paisagens digitais e as vistas panorâmicas que um drone pode extrair de um certo segmento do território, até aí praticamente invisível a olho nu, altera completamente a animação e os circuitos turísticos desse território, ou seja, doravante veremos objetos e dispositivos voadores a cruzar os céus e a redescobrir a beleza das paisagens antes ocultas; de seguida as plataformas digitais fazem o marketing respetivo e, mais tarde ou mais cedo, os desportos radicais, o desporto de orientação e os festivais mais diversos irão fazer a sua transfiguração artística, cultural e desportiva;
- O triangulo virtuoso manifesta-se, também, através da arquitetura e toponímica locais que, em conjunto com a arte e o espírito dos lugares e suas celebrações, são motivos que a economia criativa celebra e valoriza como património cultural, que a economia ecológica acolhe como parte do seu património natural e que a economia digital dissemina como recurso inesgotável e irrepetível; as bienais do património promovidos pela empresa SPIRA, os seus roteiros e visitas guiadas ao património local e o festival alentejano Terras sem Sombra são um bom exemplo desta triangulação virtuosa;
- O triangulo virtuoso está, ainda, presente na economia dos bens públicos e dos bens comuns que fazem parte do núcleo duro da economia criativa através, sobretudo, das múltiplas formas e formatos de arte pública e arte urbana e são o reflexo de uma extensão do conceito de espaço público e o resultado direto da ativação que fizemos de muitos recursos invisíveis inscritos na património e paisagem, na ciência e tecnologia, na arte e na cultura, o que, em conjunto, é designado como a economia dos bens comuns colaborativos (BCC).
Nota Final
As alterações climáticas são, seguramente, o maior desafio deste século e o facto sistémico com maior impacto nos territórios, um impacto assimétrico que exige da governança dos territórios um programa de ação e uma dosagem bem ponderada de medidas de mitigação, adaptação e transformação. Estamos perante um assunto político da maior relevância, onde as relações de forças e o poder dos agentes principais estarão sempre presentes. Não surpreende, portanto, que, doravante, nos interroguemos continuadamente acerca da melhor ecologia da paisagem e o sistema de planeamento do território mais apropriado, que usemos, para esse efeito, cada vez mais dispositivos tecno-digitais sem, todavia, abdicarmos da inteligência humana para lhes fixarmos os limites e os efeitos e que, finalmente, perante a gravidade das alterações climáticas usemos, com ponderação e sabedoria, o lado virtuoso da nossa liberdade criativa para mudar a linha de rumo dos nossos comportamentos. A arte e a cultura estão aí para nos ajudar, desde a mais inocente manifestação de ativismo socioambiental até uma certa estetização do espaço público, desde as múltiplas narrativas da ecologia política até às múltiplas formas de arte relacionadas com os impactos climáticos e o ambiente. No final, a realidade é sempre o resultado da nossa liberdade criativa, seja ela qual for. E, já agora, muito cuidado, pois a liberdade criativa não nos liberta da estupidez humana.