O Campeonato do Mundo de futebol não começou lá muito bem para a seleção portuguesa. À portuguesa, lá poderemos defender-nos e argumentar que, se estamos menos bem, pior estão à data em que escrevo a Espanha e a Inglaterra: porque já estão fora mesmo antes de nós, pelas circunstâncias do calendário dos jogos. Vamos também borda fora? Espero que não. Mas, de forma um pouco medíocre, não me desconsola que, podendo isso acontecer, estejamos bem acompanhados.
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Mas não vou falar disso, dos jogadores, das equipas, dos talentos ou da bola, ou nem sequer dos árbitros, esses senhores que antes vestiam de preto e agora andam mais coloridos e com uma tendência desagradável para inclinarem o campo consoante o adversário de que se trate. Hoje, quero falar do árbitro verdadeiro, aquele que não se vê mas que, quando apita, até governos verga, obedientes e agradecidos. É da FIFA que se trata e do seu tremendo poder, exercido nos gabinetes e em comunicados lacónicos. A FIFA é, hoje, o árbitro que comprou o jogo.
O direito e muitas outras ciências sociais estudam o Estado, aquilo que o define e o compõe, na sua dimensão constitucional, administrativa, política e internacional. Mal fora que não o fizesse, porque ao Estado se atribui centralidade em quase tudo. É o modelo universal ou quase universal de organização das sociedades humanas, assenta num território, num povo e em poderes mais ou menos bem distribuídos. E é também considerado como o ator principal - aliás, durante muito tempo, exclusivo - das relações internacionais.
Toda esta construção política e jurídica continua a ser dominante e influencia, naturalmente, a nossa forma de pensar, em torno de um poder público, soberano e vertical, espera-se que democrático, exercido num determinado espaço.
O pequeno, o ligeiro problema, é que cada vez mais esta idealização do poder deixou de corresponder à realidade e, bem ao contrário, cada vez menos a explica e cada vez mais deforma a perceção que dela temos, com resultados por vezes muito maus.
E é aqui que entra a FIFA (Fédération Internationale de Football Association). Não é um Estado, mas tem mais poder que muitos estados. Responsabiliza, ordena, castiga, mas não aceita sequer ser questionada.
Não admite fronteiras, porque os seus membros são as federações nacionais e com elas lida. Só com elas? Não é bem assim: lida com elas e lida com governos, e tem o melhor de dois mundos. Realmente, age como um ator internacional de muito relevo, e, para confirmá-lo, basta pensar que o futebol, além de um jogo, é também um negócio que, por ano, envolve milhões de euros aos jorros. Mas, se os estados são atores internacionais que têm direitos e obrigações que resultam de tal estatuto, a FIFA esquiva-se às obrigações como uma enguia ágil. É ator internacional e verga governos, se necessário for. Mas não responde, porque diz ser uma entidade privada "irresponsável" no plano internacional.
Há dias, vi parte do programa "Last Week Tonight", de John Oliver, justamente consagrado à FIFA. Não houve grandes novidades, mas os americanos até no humor são excelentes. E John Oliver, de forma implacável, invocou factos atrás de factos, demonstrando como o Brasil teve que se vergar às "regras" da FIFA para poder ter o direito de torrar milhares de milhões a organizar o Campeonato do Mundo de futebol. Como teve, inclusive, de aceitar a venda de cerveja nos estádios, porque um dos grandes patrocinadores é o dono da Budweiser. E a FIFA, e o senhor Blatter, participaram neste esforço todo, com simpatia imperial.
Hoje, a FIFA é uma extraordinária oligarquia, que movimenta somas colossais, que "escolhe" países para organizar campeonatos onde até os ovos estrelam ao ar livre; que marca jogos para horas loucas, porque os direitos televisivos assim o exigem; que invoca a sua "responsabilidade social" com um ar extremamente sério.
Um estudo calculou que a construção dos estádios do Mundial no Qatar vá custar a vida a milhares de trabalhadores, pelas condições climatéricas brutais naquele país. E logo, zás, no seu sítio oficial a FIFA anuncia que o Estado do Qatar reviu as suas leis laborais por forma a zelar pelo bem-estar dos seus trabalhadores e, em especial, dos trabalhadores migrantes. Melhor é difícil, realmente.
E agora, bom jogo: Santa FIFA vela por nós.