Nos gloriosos e resplandecentes tempos do cavaquismo, um hemofílico irreversivelmente envenenado com o vírus da sida por sangue comprado pelo magnífico e inesquecível Governo, pediu esta mirabolância: «Gostava de ver o mundo antes de morrer.»
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Morreu sem ver o mundo, que o dinheiro público não está para pieguices dessas, só depois de decisão transitada em julgado o excelso Executivo se disporia a indemnizar.
Agora - custa-me dizer isto, maculando a saudosa governação cavaquista - este bistre e fosco governo lembrou-se de propor já uma indemnização aos desventurados que ficaram cegos ou (ainda mais) deficientes visuais, por erro de tratamento no Hospital de Santa Maria.
Criou uma comissão, presidida por magistrado, mas fora do tribunal, para evitar as ruminações da máquina judicial que, à semelhança dos bovinos, deve ter no mínimo quatro estômagos antes de produzir o cálido pasto dos escaravelhos.
Um ponto a favor da deslustrada governação de hoje contra a incensada gestão cavaquista.
Foi mais longe o ominoso Executivo: deu latitude à comissão para propor valores acima do que os mesmos cidadãos conseguiriam em pleito judicial.
Valores recorde, disse-se. Dois a zero.
Mas - lá estou eu… - não me conformo. Clama o princípio geral do direito sobre a indemnização que é preciso restituir o lesado à situação em que estava antes da lesão que sofreu. Deixá-lo indemne. Sem dano.
Ah, mas não se pode restituir a vista a quem lhe foi furtada, por ou sem querer.
Pois não. Mas podem proporcionar-se as condições para o lesado fazer o que faria se não tivesse sido maltratado. Para isso, talvez seja necessário pagar a empregados que lhe façam 24 horas por dia aquilo que ele não consegue fazer sozinho e, no fim de tudo, sobrar-lhe exactamente o ordenado que receberia se pudesse estar a trabalhar.
É este o princípio, que nada diz sobre as pessoas só terem direito àquilo a que os tribunais «costumam atribuir», segundo critérios que devem ser muito sábios, mas que não deixam as pessoas como estavam antes da lesão.
Faço este convite em surdina a todos os magistrados, doutrinadores e legisladores:
«Fala-se em duzentos e tal mil euros de indemnização para quem ficou cego; pois eu proponho triplo do que tão prudente e generosamente se atribuiu. Importa-se alguma de vossas excelências de deixar que lhe vazem os olhinhos?»
Pois é, antevejo a resposta. O princípio da indemnização não pode sofrer as contingências de saber em quem se introduz a malagueta, ardor em nós, refresco talvez nos outros. Acho eu.