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O presidente da República faltou ao funeral de um dos maiores vultos de sempre da cultura portuguesa. Pode gostar-se ou odiar-se o que Saramago fez, disse e escreveu, mas isso não tira um milímetro à competência, internacionalmente reconhecida, do comunista que faleceu na passada sexta-feira. Daí que a opção de Cavaco Silva seja estranha, para dizer o mínimo.
Como se sabe, o chefe de Estado é um institucionalista dos sete costados. Gosta de definir tudo com regra e esquadro, de cumprir tradições e não enjeitar obrigações, para que o espaço da crítica seja reduzido. Por isso, a sua ausência nas exéquias de Saramago choca com a sua prática de sempre. E choca porquê? Choca, porque, por uma vez, o presidente da República Cavaco Silva não soube separar-se do cidadão Cavaco Silva. E isso é lamentável.
E mais lamentável ainda quando se lê o argumentário em que o chefe de Estado se respalda para justificar a falta. Há o lado institucional: diz Cavaco que escreveu uma mensagem elogiosa (imagina-se o que lhe deve ter custado colocar a assinatura por debaixo dos encómios...), que enviou os seus chefes das casas civil e militar ao funeral, que mandou uma coroa de flores e que promulgou os dois dias de luto nacional aprovados pelo Governo.
Evidentemente, nada disto chega para cobrir a falha: é inimaginável um chefe de Estado faltar ao funeral de um português que ganhou, pelo uso da sua língua materna, um Prémio Nobel. Eanes, Jorge Sampaio e Mário Soares perceberam isso com clareza. Melhor: não é somente inimaginável. A partir do momento em que Cavaco Silva justificou a ausência com uma promessa que tinha feito "à família, filhos e netos, de lhes mostrar a beleza da região" dos Açores, o argumento passou a constar na prateleira das justificações mais ridículas e miudinhas do século. Coisa que, como se percebe, só apouca o chefe de Estado.
Em boa verdade, Cavaco detestava Saramago, que um dia lhe chamou, numa estação televisiva, o "génio da banalidade". Ironia: na hora da morte de José Saramago, o presidente da República voltou a ser "banal", quando aquilo que se lhe exigia era, apenas, grandeza institucional.