O ator e o sistema, a rutura iminente
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Nos tempos que correm, mergulhados nas redes sociais e respetivas bolhas e sufocados pelo imediatismo mediático das fake news, somos presas fáceis dos influencers do pensamento ligeiro e da simplificação argumentativa e discursiva. No futuro próximo, cada vez mais híper-conectado, automatizado e virtualizado, onde ficam a arte das relações humanas, a ética prática dos direitos humanos, a utilidade social do respeito, isto é, a humanidade? Porque é que investimos tanto em tecnologia, sistemas automáticos e inteligência artificial e tão pouco em relações humanas, inteligência emocional, sociabilidade e humanidade?
De um lado, a racionalidade limitada e contingente dos atores, do outro, a desmaterialização das relações de poder das organizações. Quanto ao sistema, a sua interdependência crescente convive com um défice preocupante de estruturação e regulação. Ou seja, já todos percebemos que vivemos uma espécie de perceção difusa e furtiva da realidade, num labirinto ou poluição discursivo que visa confundir-nos e limitar substancialmente as nossas possibilidades de ser bem-sucedido. O caos está instalado, são preconceitos e ideias feitas, factos consumados, interesses adquiridos, tráficos de influência, publicidade enganosa, propaganda vulgar, jogos de sedução, simulacros de participação, um ruído de fundo que não nos deixa ver claro.
Há algumas décadas apenas, o ator e o sistema estavam, digamos, inscritos na lógica das coisas, eram previsíveis e programáveis por que eram, principalmente, hierarquia, comando e controlo. No último quarto de século, porém, o futuro deixou de estar inscrito na lógica das coisas, tornou-se instável e virtualmente líquido, uma metáfora para o estado da nossa condição humana onde tudo é volátil, efémero, precário, transitório, passageiro, instável, temporário, fluido, enfim, líquido. A passagem do conceito de ordem ou estrutura (sólido) para o conceito de rede ou conexão (líquida) dá bem conta dessa transição. E estas noções líquidas e fluidas são de aplicação em todas as áreas, desde as relações amorosas e familiares até às relações de poder nos campos da economia, da sociedade, da política e, obviamente, da revolução digital.
De acordo com o imaginário social da cultura tecnológica e digital dominante está em curso a desconstrução da relação humana e social que, apesar de tudo, ainda prevalecia nas velhas estruturas da modernidade do estado sólido – luta de classes, sindicalismo, industrialismo, Estado-Providência, doutrina social da igreja e ideologia social-democrata. Estas velharias do estado sólido do sistema antigo estão hoje, digamos,
abaixo da linha de água, em plena modernidade líquida. Tudo o que dávamos por adquirido está definitivamente posto em causa, a começar pela herança comunitária das nossas relações de vizinhança e proximidade. No tempo líquido em que vivemos a vida não é um projeto, mas, antes, uma série ou coleção de episódios. Agora, as relações sociais na comunidade dão lugar às conexões na rede. Tudo é descartável.
É aqui que nos encontramos. De um lado, a diversão e o entretenimento baratos das comunidades online, a bricolage permanente das relações e as crises de atenção e impaciência perante o oceano de informação em que estamos mergulhados, do outro, as dores da vida quotidiana onde a sensibilidade e a empatia são muito mais importantes do que a pureza teórica e a embriaguez tecnológica. Além disso, neste imaginário social, o grande mito da convergência tecnológica parece disposto a provar que o ser humano é pura transição, uma máquina neuronal gigantesca onde o processo prevalece sobre a forma, do ser natural ao ser melhorado e do ser biónico ao ser pós-humano. Neste contexto de convergência tecnológica estaríamos disponíveis para alienar a nossa inteligência racional em dispositivos exteriores e a nossa inteligência emocional em redes sociais devidamente programadas e acondicionadas.
Com este imaginário social da cultura tecnológica e digital, simultaneamente absurdo, caótico, inovador e criativo, reconfiguram-se discursos muito variados, assim como as representações dos protagonistas mais diversos, ou seja, reposiciona-se a relação entre o ator e o sistema, tornada, agora, muito mais complexa e interdependente. Desde logo, os grandes operadores, as plataformas tecnológicas, que reconfiguram a comunicação empresarial e os serviços de publicidade e marketing. Depois, os meios de comunicação social e as artes digitais que reformulam os grandes eventos, mas, também, o universo das artes, da moda e da ciência-ficção. A seguir, os centros de pesquisa e desenvolvimento que através da investigação fundamental nos transportam aos confins da inteligência artificial, do metaverso e da computação quântica e aos universos desconhecidos do transumanismo e pós-humanismo. Ao mesmo tempo, algo desorientados, o governo e a administração pública, procuram realinhar os seus programas de políticas públicas e financiamentos e, nesse alinhamento também o convencional lobbying institucional. Por fim, os próprios utilizadores, uns em modo de inovação starting up, outros em modo de servidão voluntária, vivendo todos uma espécie de embriaguez tecnológica e digital. Ou seja, o imaginário social da cultura digital, arrastado pelo grande protagonismo dos conglomerados tecnológicos, tem servido para encobrir uma parte substancial das dores desta fase do capitalismo que alguns, eufemisticamente, (Boutang, 2007) denominaram de capitalismo cognitivo.
Aqui chegados, este conturbado imaginário social e cultural mostra-nos até que ponto a relação triangular entre o ator, o sistema e o estado-administração está à beira de uma rutura iminente. A invasão do Capitólio nos EUA e do Palácio do Planalto no Brasil são sinais muito eloquentes dessa turbulência política e rutura iminente.
Neste caldo de cultura política, a transformação digital e as grandes plataformas irão progressivamente dessacralizar a base e os limites territoriais das organizações, o Estado-nação deixará de controlar o seu território, enquanto os movimentos mais radicais protestarão contra o Estado porque este não garante a sua soberania contra os efeitos da extraterritorialidade. Como sabemos, a geoeconomia das plataformas promove uma cura de emagrecimento nas intermediações mais convencionais, sejam elas económicas, financeiras, institucionais ou associativas e essa razão já seria suficiente para promover a transformação digital das organizações privadas e públicas e a relação entre o ator e o sistema. Há, com efeito, uma discrepância muito grande entre a necessidade de uma identidade coletiva para enfrentar os desafios globais e, por outro lado, o radicalismo individualista, a necessidade de afirmar a nossa diferença radical. Está a ser difícil conciliar estas duas dimensões do espaço público, pois a liberdade radical pulveriza e fragmenta todas as formas de organização, das mais pequenas até às maiores. Esta é, também, a razão pela qual as políticas de integração ou assimilação correm o sério risco de ser contraproducentes, pois não é de identidade que se trata, mas de diferenciação e diversidade. As culturas, como as pessoas, são muito egoístas e afirmar a integração é despertar a desobediência civil. A política é vítima fácil desta circunstância. Estamos cada vez mais próximos do estado gasoso, com a pulverização social em bolhas nas redes sociais, extraterritorialidade, capitalismo de vigilância e estado policial.
Notas Finais
O universo laboral é um bom indicador desta mudança profunda entre o ator e o sistema. Na transição do velho silo industrial e administrativo para o túnel digital do capitalismo das plataformas, o trabalho digital e o homo digitalis passarão para as categorias híbridas e líquidas da sociedade do século XXI, sob múltiplas formas e modalidades. Não só teremos de encontrar um denominador comum para as diversas modalidades de trabalho - trabalho por conta de outrem, trabalho por conta própria, trabalho colaborativo, trabalho comunitário, trabalho voluntário, trabalho on demand,
biscastes e macjobs – como teremos de encontrar um novo modus vivendi para o ambiente de trabalho, que vai desde o teletrabalho mais isolado do nómada digital até aos adjuntos autónomos da inteligência artificial e, dentro em breve, até à família metaverso dos avatares transumanistas e pós-humanistas. Que relação é esta entre o ator e o sistema? Qual é o tempo e a velocidade que queremos escolher, entre os instantes infinitesimais do quotidiano e o tempo lento da arte e da cultura?
E os novos direitos humanos na era digital, quem traça os limites e onde? O direito a permanecer um humano não-aumentado, simplesmente, ou o direito a permanecer ineficiente e excluído, ou o direito a permanecer desligado fora do horário de trabalho, ou o direito de permanecer invisível face às câmaras de vigilância, ou o direito e o privilégio de trabalhar exclusivamente com humanos? Mas num universo cada vez mais digital, qual é a ética prática que prevalece? A da inteligência artificial e da computação cognitiva ou a ética da humanidade, mesmo já aumentada e melhorada?
Cuidado, pois, com a armadilha do narcisismo digital. Não deixemos que a inteligência artificial tome conta da nossa inteligência racional, não deixemos que a arte emocional das relações humanas seja trocada pela caricatura de uma bricolage social, renovemos o princípio da precaução e a ética do cuidado, vivamos a vida ao quotidiano nas nossas comunidades offline e sempre que necessário acionemos o direito de desligar. Precisamos de tempo, muito tempo, para lidar e cuidar das impurezas e imperfeições das várias camadas da realidade.