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É criminosa a forma como são tratados os trabalhadores da periferia de Lisboa. Recorro a esta hipérbole para descrever uma situação que, não estando tipificada no Código Penal, nos devia envergonhar a todos, de uma forma geral, e aos políticos, de forma muito particular. A estatística que diz que comendo eu um frango e o meu vizinho nenhum comemos metade cada um também nos diz que os transportes públicos cumprem a lotação reduzida imposta pela pandemia, fazendo a média dos transportes que andam sobrelotados no leva-e-traz dos trabalhadores e vazios no resto do tempo.
Esta estatística permitiu ao primeiro-ministro dizer, no final de maio, "que as taxas de lotação têm sido genericamente cumpridas", considerando que o "risco de contaminação" estava "absolutamente controlado". Mas o problema nunca deixou de ser, como relatou, também em maio, Lurdes Moderna, residente em Odivelas e a trabalhar em Lisboa: "Estavam as pessoas todas com máscara, o problema é que temos menos autocarros". Dura desde o primeiro dia do estado de emergência e não melhorou no desconfinamento.
Assim que o Governo mandou encerrar as escolas, as empresas de transportes adotaram o horário de férias escolares e reduziram as carreiras. Trabalhadores transportados em condições de alto risco, contribuindo para o aumento dos contágios, não tiraram o sono ao poder político. De tal forma que, estando a média de contágios a subir em Lisboa e Vale do Tejo (LVT) de forma consistente, isso não impediu a grande "vitória" lisboeta. Quando, a 2 de junho, o presidente anunciou que estava para chegar uma grande notícia, LVT tinha uma média diária de 245 novos contágios, bem acima dos 82,9 do início do desconfinamento. A 17 de junho, com pompa e circunstância, mas total falta de bom senso, foi anunciada a final da Liga dos Campeões. Estava mais que confirmada a falta de controlo da pandemia na capital. Os políticos já só pensavam em festas.
Voltemos ao autocarro da vergonha, aquele que transporta trabalhadores em condições que violam de forma clara as regras estabelecidas para combater eficazmente a pandemia. A semana passada, a Área Metropolitana, decidiu que a partir de amanhã "a oferta dos transportes públicos rodoviários deve corresponder a 90% do serviço existente antes da pandemia". Há autocarros e há motoristas, mas só agora é que houve vontade política para gastar um dinheirinho extra na proteção dos trabalhadores. Ainda assim, se já perceberam que há um problema, porque é que acham que se pode esperar mais uns dias? Porquê?!
*Jornalista