A possibilidade de o bastonário da Ordem dos Advogados desencadear junto doTC a verificação das leis é inovadora.
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A Proposta de Revisão Constitucional do PSD consagra uma das medidas que, há vários anos, venho reclamando, ou seja, a possibilidade de o Bastonário da Ordem dos Advogados (OA) desencadear junto do Tribunal Constitucional (TC) o processo de fiscalização abstracta da constitucionalidade das leis. Trata-se de uma medida inovadora que, a ser aprovada, irá contribuir para um fortalecimento do estado de direito democrático e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Já nos programas de acção com que, em 2004 e 2007, me apresentei às eleições para o cargo de Bastonário defendia que a OA deverá ter legitimidade para suscitar junto do TC o processo de controlo abstracto e sucessivo da conformidade formal e material das normas legais com a Constituição da República Portuguesa.
Porém e surpreendentemente, a proposta do PSD não agradou a todos. Num texto assinado por Miguel Abrantes no blogue Câmara Corporativa, afirma-se que o «bastonário da Ordem dos Advogados existe, isso sim, para defender e promover os interesses particulares da classe profissional que representa» e que «é uma figura que não tem consagração constitucional e que não pertence à orgânica do Estado». Nada mais errado.
A OA é uma associação pública que, por um lado, não pode exercer funções próprias dos sindicatos (artigo 267º da CRP) e, por outro, tem como principais atribuições a defesa do Estado de direito, dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, a colaboração na administração da justiça, bem como assegurar o acesso ao direito, promover o acesso ao conhecimento e aplicação do direito e contribuir para o desenvolvimento da cultura jurídica e aperfeiçoamento da elaboração do direito (cfr. artigo 3º da Lei 15/2005, de 26 de Janeiro).
Além disso, a OA regula o exercício de uma profissão com relevantíssimo interesse público e, por isso a CRP, no seu artigo 208º, determina que a lei assegure aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regule o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça. E, assim, quer o Estatuto da OA, quer a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, estabelecem um amplo conjunto de garantias para os advogados, justamente, porque a sua actividade é imprescindível à realização de um dos valores superiores do estado de direito, que é a boa administração da justiça. Basta atentar que muitos dos direitos fundamentais dos cidadãos só podem realizar-se na prática através de advogados (artigos 20º e 32º, nº 1, nº 3, nº 7 da CRP).
A OA, enquanto entidade reguladora do exercício da advocacia tem, pois, reconhecimento constitucional implícito, entre outros, nos artigos 208º, 20º e 32º, nº 1, nº 3, nº 7 da CRP) e, portanto, idêntico aos do Provedor da Justiça e do Procurador-Geral da República (artigos 23º e 220º da CRP). Por outro lado, o Provedor de Justiça, enquanto entidade administrativa independente, tem a sua legitimidade constitucional radicada no mesmo preceito que a OA, enquanto associação pública (artigo 267º). Além disso, há disposições legais que equiparam o Bastonário da OA ao Procurador-Geral da República (artigo 24º da Lei 15/2005, de 26 de Janeiro) e o próprio protocolo de estado reconhece aos bastonários das ordens um lugar na respectiva lista de precedências.
Nenhuma profissão privada, com excepção do jornalismo (artigos 37º e 38º da CRP), goza de idêntico estatuto constitucional. Com efeito, a advocacia e o jornalismo são as duas únicas «profissões privadas» a quem a Constituição concede determinadas prerrogativas e garantias com vista à consecução de fins públicos necessários à realização do estado de direito democrático: boa administração da justiça e liberdade de informação.
Por isso, em 1982, o legislador constituinte «constitucionalizou» as ordens profissionais (artigo 267º), justamente, porque o estado de direito democrático não podia prescindir da regulação pública de certas profissões.
Perante este enquadramento, pergunta-se: por que é que, num estado de direito, o presidente de uma associação pública, cuja primeira atribuição é, precisamente, a defesa do estado de direito e dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, bem como colaborar na administração da justiça, não poderá pedir ao Tribunal Constitucional que a aprecie a constitucionalidade de certas leis ou normas legais? Por que persistir em reservar essa faculdade apenas ao poder político (que é quem faz as leis) e a entidades que dele dependem, pelo menos quanto à sua nomeação e recondução?