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É da tradição judaico-cristã que naquele dia se levem dois bodes ao altar dos sacrifícios. Um é para queimar. O outro, sobre o qual se poisam as mãos em sinal de confissão e arrependimento, é apartado do rebanho e largado à míngua, carregando consigo a culpa, para resgate e remissão de todos os pecados do mundo. Daí a expressão bode expiatório, que aprendemos do Levítico, terceiro dos cinco livros da Bíblia cuja autoria se atribui a Moisés.
A fogueira já arde, mas tarda a expiação. Na Assembleia da República escalda o inquérito ao processo que conduziu à venda e resolução do BANIF, um ano depois de idêntica saga sobre a hecatombe do BES, contributo para que se apurem as razões dos desastres financeiros que estamos a pagar e que ocorreram debaixo do nariz de governos, da Justiça e da supervisão bancária.
Há, porém, uma cortina de fumo que tolda a visão sobre o sistema financeiro português, inundado em crédito mal parado. As carteiras dos bancos estão carregadas de lixo, ou seja, de créditos de difícil cobrança, muitas vezes sem garantias. Normalmente de grandes devedores. Valores aqui revelados pelo antigo ministro Teixeira dos Santos apontam para 20 mil milhões o montante de crédito bancário em incumprimento. Ou seja, quase 10% do total de crédito concedido (empréstimos) às famílias e às empresas. Ou seja, um pesadelo que "é sintoma de uma economia doente" e "um dos principais obstáculos ao crescimento e à criação de emprego".
Culpas? Ao Parlamento compete apurar as responsabilidades políticas, à Justiça reclama-se que investigue e julgue as criminais. Porque os portugueses merecem conhecer o nome de quantos gestores e banqueiros emprestaram dinheiro (nalguns casos a si próprios ou às suas famílias e amigos) sem a contrapartida de garantias reais ou realistas. Chegou-se até aqui com o silêncio ou a cumplicidade de sucessivos governos, com erros e omissões da supervisão bancária, mas também com a vista grossa da troika, que andou por cá três anos em operações de limpeza sobre os rendimentos do trabalho, mas fez vista grossa aos desmandos da banca.
Na hora de encontrar um bode expiatório, a cabeça de Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, é o alvo fácil para que o rebanho de incumpridores, da banca aos governos e reguladores, possa fazer a habitual transumância e conduzi-lo ao altar dos sacrifícios. Num tempo em que a política se deixou capturar pelo interesse financeiro, haja alguém capaz de engolir o fel para salvar a face do regime.
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