Quase no Natal, deixemo-nos inspirar pelo seu espírito tanto quanto nos permite a ilusão das luzes, das músicas e dos encontros. Mas talvez faça parte do tempo, olhar o Mundo pelo lado do boi e do burro, as personagens secundárias do presépio.
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Há pouco tempo, recordei a peça infantil "O boi e o burro" a caminho de Belém, a primeira de uma longa lista escrita em 1952 pela brasileira Maria Clara Machado, que representei no início dos anos 70, ainda estudante de liceu, e este ano o Leirena Teatro leva às escolas da região de Leiria, sobretudo as mais recônditas, interpretado por jovens do curso profissional de Artes do Espetáculo. Recordo o esforço, nesses anos de chumbo, para encontrar uma peça de teatro que a censura interna e externa deixasse passar e, ao mesmo tempo, tivesse significado. O Liceu Filipa de Lencastre, em Lisboa, era uma das mais conservadoras escolas femininas, com regras muito estritas e que iam do vestuário ao impedimento de qualquer presença masculina, ao ponto de as alunas só poderem dançar umas com as outras nos bailes de finalistas. Ler Eça de Queirós era tão proibido como o livro vermelho de Mao Tse-Tung, mas ambos passavam de mão em mão, e a imaginação era o limite para descobrir formas de contrariar os códigos de ferro. Nesses anos, a educação das meninas, mesmo num liceu público, passava por aulas de culinária, puericultura (com bonecos a servirem de cobaias para aprendermos a ser mães exemplares) e costura, em que invariavelmente fazíamos umas camisas de bebé para dar aos pobrezinhos, numas visitas natalícias caridosas de má memória.
O teatro era a nossa arma mais poderosa e tínhamos professoras cúmplices que colaboravam nesse pequeno gesto de não nos rendermos. Representar o Natal a partir das figuras do boi e do burro era só por si um ato de coragem porque chamava a atenção para aqueles que ficam na sombra. E são a maioria.
O Natal deixou de ser uma festa de cristãos para se tornar num bazar de luzes que perdeu o sentido inicial. Ainda bem se contribui para alguma alegria e maravilhamento. Outro lado bem negro são os massacres de cristãos que se tornaram a pior notícia do Natal e nos despertam para a violência do ódio e o que lhe subjaz. Se não olharmos para os invisíveis e não lhe dermos voz, acabaremos submersos pela tempestade de areia que consome a Humanidade. Por enquanto são os outros, até acontecer sermos nós. Boas festas!
* Professora universitária
