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Quebro o meu jejum de temas locais para voltar ao Bolhão, processo que sigo há anos por o considerar um espaço fundamental da identidade portuense e por, nos últimos tempos, se ter tornado um caso lapidar da capacidade, ou não, de uma cidade se renovar sem delapidar a sua alma.
Em 2008, com Rui Rio e as ameaças de "shopping" que pairavam, escrevi: "Um dia, os nossos netos vão olhar para as velhas fotografias em papel do Mercado do Bolhão e, com o mesmo sentimento com que nós hoje contemplamos as imagens do desaparecido Palácio de Cristal, vão perguntar: "Como é que vocês deixaram que isto desaparecesse?""
Já com Rui Moreira, regressei ao tema para vaticinar que "era desta", pois a explosão turística tornava ilógica qualquer solução que não passasse pela rápida recuperação, mantendo as suas características de mercado de frescos. Para além do mais, o presidente tinha inscrito no seu programa eleitoral exatamente isto, prometendo executar esse programa num ano, e o seu Executivo integrava alguém, Correia Fernandes, que defendera que, "tirando a questão da habitação, não devia haver nenhuma prioridade acima do Mercado do Bolhão".
Tardou, vai demorar mais, mas na semana passada, ao fim de 30 anos de promessas, a Câmara do Porto apresentou um cronograma definitivo e o orçamento para um programa que parece bem gizado, com capacidade para fazer o Bolhão retomar o sentido dos tempos.
Inicia-se agora uma etapa decisiva, que não está a arrancar bem. Depois da indefinição em relação ao local para instalar o mercado provisório, o diálogo com os comerciantes só está a começar a sério depois do projeto apresentado e começa a suscitar muitas dúvidas sobre a capacidade de os comerciantes ultrapassarem este momento crucial. As gentes do Bolhão já foram 400, hoje são 129, envelhecidos, maltratados pela decadência do mercado e pela indefinição de sucessivos executivos. Conseguir manter vivos estes 129, a alma do Bolhão, é uma das medidas pelas quais se julgará o sucesso desta empreitada.
"Só não ficará quem não quiser", tem repetido Rui Moreira. Mas na vida, às vezes, não chega o querer, é preciso poder. E para muitos vai ser mesmo difícil atravessar a passagem de um mercado como o Bolhão para o subterrâneo do centro comercial La Vie. É a vida, é, mas para quem tem a guarda da coisa pública, tem de ser claro que os comerciantes são os alicerces mais frágeis do Bolhão que todos nós queremos preservar.
*SUBDIRETOR