É já bem clara a longa teia de cumplicidades entretecida entre a política, a ganância ilimitada do lucro e o jornalismo sem escrúpulos, instrumentos de estratégias de poder.
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Na passada segunda-feira, o repórter do jornal londrino "News of the World" que fora despedido em 2007, por alegada dependência do álcool, e que viria a ser o autor das primeiras denúncias de escutas ilegais de que é acusado o jornal para que trabalhou, foi encontrado morto na sua casa. As autoridades policiais declararam que a morte "não era suspeita" mas ainda decorrem as averiguações para determinar a sua causa.
A verdade é que o Parlamento britânico apenas fechou para férias depois de ouvir e questionar pormenorizadamente o primeiro-ministro, David Cameron, que se viu obrigado a interromper uma visita de Estado para vir prestar esclarecimentos à Câmara dos Comuns acerca do escândalo que desabou sobre o império mediático de Rupert Murdoch. Ainda que tenham sido aceites como satisfatórias, as explicações do primeiro-ministro britânico não encerraram o problema nem a credibilidade de Cameron estará segura até ao desenlace dos inquéritos e dos processos judiciais que continuarão a correr, apesar das férias.
A liberdade de expressão e a liberdade de Imprensa são parte essencial daquilo que desde Max Weber designamos por "ética protestante", fruto original das perseguições religiosas na Europa do século XVI e ainda, segundo o autor, matriz ideológica do capitalismo moderno. Estas liberdades, por fim, substituindo a autoridade religiosa pelo poder político como seu principal inimigo, ganharam o estatuto de princípio constitucional com as revoluções liberais do final do século XVIII. A liberdade de Imprensa gozava de uma protecção muito especial no mundo anglo-saxónico que não se compadece das limitações que outros mais facilmente lhe consentem, em nome do interesse público, da segurança, da defesa do bom-nome, da reserva da intimidade privada e até da livre concorrência. A esta especial sensibilidade, agora rudemente afectada, e às respectivas implicações políticas, devem a sua "fortuna" - e os infortúnios presentes - os protagonistas dos grandes escândalos mediáticos do momento: Julian Assange e Rupert Murdoch. São ambos cidadãos de origem australiana e só por acaso não se terão cruzado em Londres esta semana, onde aterrou o segundo, por convocatória do Parlamento, e o primeiro aguarda a sentença de um estranho pedido de extradição. E terminam aqui as semelhanças entre eles.
A prisão do antigo director do "News World", Andy Coulson, não é um incidente. O principal suspeito das escutas ilegais e do suborno de polícias saiu do jornal para se colocar ao serviço do Partido Conservador, ainda na oposição, e apesar das denúncias e graves rumores que se faziam ouvir, foi levado por David Cameron para "director de comunicação" do Governo de Sua Majestade e por ele dispensado de investigações mais severas do seu passado, antes de assumir o cargo, uma atitude de condescendência sem paralelo nos procedimentos adoptados para cargos análogos pelos anteriores inquilinos do n.º 10 de Downing Street.
O colunista do "Washington Post", Richard Cohen, compara Rupert Murdoch e o império mediático que construiu à saga de "Citizen Kane", o drama clássico dirigido por Orson Welles, em 1941. As infâmias que abalam o império de Murdoch convocam galerias inteiras de falsos heróis e desprezíveis vilões. A presunção de inocência, apesar de "fora de moda", como disse Cameron, recomenda contenção nos juízos acerca de responsabilidades individuais. Porém, é já bem clara a longa teia de cumplicidades entretecida entre a política, a ganância ilimitada do lucro e o jornalismo sem escrúpulos, instrumentos de estratégias de poder, qualquer que seja a sua adjectivação. Como metáfora, prefiro o famoso western de Sergio Leone - O bom, o mau e o vilão - de 1966. Com este fabuloso "casting", experimente o leitor distribuir os vícios e virtudes e escolha os seus heróis, se achar algum.