O branqueamento do Irão e o esquecimento do Sudão
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A chacina que o exército israelita leva a cabo na Faixa de Gaza, impunemente, morde-nos a consciência. Israel transformou-se num Estado-carrasco. Face à matança de palestinianos, não se esperava menos que a comoção e a indignação das multidões. O que já não se esperava era que o ataque a alvos militares no Irão, por Israel e pelos EUA, fosse pretexto para o branqueamento da mais cruel e sinistra ditadura religiosa do nosso tempo.
O regime que mais executou sentenças de morte em 2024, que comissiona o terrorismo ou que enforca homossexuais na praça pública, que sonha com a erradicação da “entidade sionista” e persegue, com mil ardis, a arma definitiva para obrá-la, exultou com os ocidentais que apontaram a ilegalidade da intervenção de Israel. Jeremy Corbyn, que tem no currículo participações remuneradas na TV estatal iraniana e afirmava, em 2009, que os seus “amigos do Hamas e do Hezbollah procuram a paz e a justiça social”, foi um deles.
Para a aristocracia moral da Europa, as ditaduras estão protegidas pelo direito internacional. Persiste o fascínio de certos setores ideológicos com a Revolução iraniana de 1979, numa projeção especialmente doentia de um sentimento antiocidental que é, com a ajuda de Cesário Verde, um “desejo absurdo de sofrer” pelos nossos pecados, reais ou efabulados. Foucault, em Teerão, vislumbrou no “santo” Khomeini o regresso da “espiritualidade” à política. O embevecimento perdurou quando as máscaras já tinham caído e ficava à mostra uma teocracia impiedosa, que impôs a sharia e assassinou mais de cem mil dissidentes.
Enquanto as boas almas tomam as dores do Irão, em África, o continente enjeitado, a guerra mais mortífera da atualidade vai de vento em popa. É no Sudão. 150 mil mortos. Dez milhões de deslocados. Limpeza étnica, violência sexual sistémica, fome. Cidades devastadas. Há dois anos que dura. Mas dos pobres sudaneses ninguém toma as dores. Meses sem uma notícia. Silêncio dos indignados com Gaza. Nem uma gota de suor esbanjada para pedir ação à UE e aos países ocidentais. Nenhuma condenação dos países árabes e africanos que armam os carniceiros.
Talvez Nietzsche tivesse razão, afinal, quando escreveu que “ninguém mente mais do que um homem indignado”.