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É coisa corriqueira de romance policial. A mulher fatal assassinada no início da investigação tinha um caderninho preto onde apontava os nomes e os contactos de todos aqueles a quem tinha proporcionado prazeres proibidos. Coisa preciosa portanto, que ao longo da história irá dar lugar a inúmeras peripécias, quiçá a assassinatos, na tentativa de ter na mão informação que é fonte de poder.
Nos dias que correm, o caderninho preto da madame chama-se disco duro, ou "nuvem" e os seus segredos estão inscritos em linguagem binária. Era esse o caso do site Ashley Madison, onde milhões de homens se inscreveram na esperança de um encontro amoroso fora da sua relação legal. Aqui o caso policial começou quando hackers decidiram roubar 9,7 gigabytes de informação e torná-la disponível para quem quisesse bisbilhotar.
Não faltou quem visse nesta exposição um caso de revelação de interesse público, uma espécie de "wikiLeaks" de alcova. Mas viram mal. Mesmo que o ato possa desmascarar um ou dois hipócritas dos costumes, a violação de privacidade que ele representa não tem qualquer justificação.
Não seria difícil relembrar aqui as muitas vidas que terão sido destruídas neste striptease, sem que os visados tenham grandes hipóteses de defesa dos polícias anónimos dos bons costumes. Mas acho que bastava perguntar a cada um, se isto fosse cara a cara, de pele e osso, e não digital, se não se interrogaria muitas vezes antes de ir bisbilhotar nos ficheiros ou antes de divulgar esta informação.
Esta despersonalização que o digital nos parece conferir, como um manto de impunidade, tem de ser bem avaliada não só por aqueles que acham que é correto partilhar os segredos dos outros, mas também por aqueles que acham que os seus segredos estão mais bem protegidos por se tratar de um site. Não estão, tal como o mundo real, a Internet não é um mundo seguro.
Esta é uma lição a tirar deste caso. A outra é que cada vez mais estes espaços públicos têm de ser regulados e vigiados pelas autoridades civis. Não são um mundo à parte do nosso, são simplesmente uma sua extensão. Por isso, da próxima vez que partilhar um mail calunioso, ou um post em que são feitas acusações sem prova, pense se o faria se fosse por carta, na cara do visado ou na barra de um tribunal. Talvez devesse pensar duas vezes, ou três, ou quatro...