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À hora do almoço, faço todos os dias o caminho dos solitários. Iguais a mim, eles os solitários caminham pelo parque do Vale Fundão, em Lisboa, com destino a nada, ao próprio caminho. São quase todos homens jovens que não têm outro remédio senão esconderem a cara no véu preto do capuz, ou disfarçarem-se atrás do cão que levam a passear.
Dirigem-se a lugar nenhum. Quando lá chegam, suspeito que não se lembrem de onde vieram. Vejo-os assim, no mesmo percurso que eu, e decerto somos irmãos nas nossas distâncias - mas raios me partam se vamos para o mesmo sítio.
A um conheço-o da expressão com que desvia o olhar e, às escondidas de si mesmo, entra na tenda camuflada no meio das árvores, lá onde é mata. O cão senta-se à porta, a velar pelo embaraço do dono. Mas falta espaço à tenda para esconder a intimidade do rapaz, e a mata também é pequena: a roupa pende-lhe numa corda estendida de ramo a ramo. E há uma fogueira e livros e uma cadeira de praia. E assim ele nunca fica invisível entre as árvores.
Também passeiam mulheres velhas, sozinhas ou aos pares. Acham elas que a dois estão acompanhadas, mas eu sei que vão sozinhas, porque deixam atrás de si uma sensação de viuvez.
Como elas, passeiam, a horas desencontradas, velhos homens, sozinhos ou aos pares. Acham eles que a dois estão acompanhados, mas eu sei que vão sozinhos, porque deixam atrás de si a mesma viuvez.
Se ao menos elas as velhas e eles os velhos se unissem num banco de jardim para darem as mãos, penso eu, fariam do jardim um sítio cheio de flores. Mas as impressões de viuvez nunca se tocam e dali nada nasce e os bancos ficam por sentar.
Eu caminho com eles, de acordo com o mesmo sobe e desce. Ouvimos a sirene do quartel dos bombeiros e o bate chapa da sucateira, os carros retorcidos que alguém abandonou e agora se torcem em ferrugem. E fora do parque suspeitamos que a cidade ainda exista, apesar de tudo parecer campo, e eu um dia ter topado com um pastor a governar cabras, e de lhe ter perguntado de onde vinham elas, se atravessavam as passadeiras, e ele me ter respondido: “estas cabras fazem o que lhes mando, e garanto-lhe que até sabem matemática.” Não o contrariei - se sabem matemática, sabem mais do que eu.
Os solitários são miragens de pessoa, um tanto de gente erguida no alcatrão. Em qualquer caminho há muitos solitários, mas fico com a sensação de que em qualquer solitário há muitos caminhos. E que basta estender a mão para encontrar outra mão estendida em resposta.
(O autor escreve segundo a antiga ortografia)