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Creio que é útil comparar a vida com qualquer coisa mais pequena do que a vida, e lembro duas belas comparações criadas por portugueses: “a vida é como os interruptores, uma vezes para cima, outras vezes para baixo”, do mestre Herman José, e “a vida é uma pilha de pratos a partirem-se no chão”, do meu caro António Lobo Antunes, escritor do mundo. Imagens práticas, domésticas, que ganham peso metafísico e eu, que até evito dizer a vida e digo mais vezes “a chamada vida”, fugindo ao assunto vital, lembrei-me há pouco: “a vida é uma mesinha-de-cabeceira a encher-se de coisinhas que nunca saem, até não se conseguir abrir a gaveta”. Quer dizer, falo da minha mesinha de cabeceira, que chegou a um ponto em que só resolvi o problema trocando a mesinha por outra nova, era-me difícil livrar do entulho que se espalharia no chão: auscultadores estragados, fotos de pessoas queridas que morreram, comprimidos roídos à dentada, moedas de escudo, análises médicas, alfinetes e clips, meio quilo de pó, um bilhete do Benfica em Liverpool, um bilhete dos Rolling Stones no velhinho Alvalade, um bilhete de concerto do Prince quando não me lembro do concerto, uma viagem à Austrália, um cartão de jornalista perdido, uma foto com cabelo, multas de trânsito, um Nokya desdobrável dos primeiros, uma série de post-its com ideias ilegíveis escritas a dormir, canetas secas, um frasco cheio de lágrimas, uma pomada para qualquer coisa, um centímetro cúbico de oxigénio novo, etc. E outras novidades do passado que não sei nem quero saber o que foram.
Lembrei-me disto por causa do Rúben, que na semana passada saiu feliz, quase aos pulos, do tribunal para o Parque das Nações.
- Eh pá, eu pensei que hoje já não saía daqui!...
Ficou em suspenso, enquanto eu tentava perceber melhor.
- Aquilo foi mesmo perigoso, o senhor ia morrendo...
- Pois foi, deixei-me dormir e o autocarro quase me passou por cima. Até veio nos jornais.
- Mas quanto tempo esteve preso?
- Ao todo? Doze anos, doze! Pensei mesmo que já não saía!
De facto a juíza, vinte minutos antes, começara a ler o registo criminal de Rúben. Roubo, furto, condução sem carta, condução sob álcool, ofensa à integridade física qualificada, violência doméstica, ofensa disto e daquilo, mais roubos, furtos, assaltos. Um campeão de crimes mais ou menos. Desta vez, era o caso de uma condução no Eixo Norte-Sul, em Lisboa, noite avançada, há cerca de dois anos, quando um jipe conduzido por Rúben se enfiou num autocarro de passageiros da Carris, batendo o lado direito contra a frente esquerda do veículo público. O jipe virou-se de costas como um escaravelho moribundo, encostado à berma. Lá dentro, estendido no tejadilho, estava o condutor, morto ou vivo. Aliás, vivo mas sem sentidos, completamente bêbedo (1,86% álcool por grama de sangue).
- Só se alguém foi cuspido, o que não foi testemunhado por ninguém..., disse a juíza, na sentença.
Rúben defendera-se jurando que não ia a conduzir, que era outra pessoa que tinha entretanto desaparecido pelas bermas e arbustos.
- Havia aqui uma outra história de furto do veículo, mas isso é outra história. Aqui só estamos a julgar a condução e o álcool, continuou a juíza.
E condenou Rúben a 13 meses de prisão, hesitando se devia suspender a pena, ou mandá-lo directamente para a penitenciária.
- Senhor arguido, eu não tenho muito a dizer a quem já foi condenado tantas vezes. Diz que não se lembra, não se lembra. Mas não é por vir aqui mentir que a sua mentira passa a ser verdade...
E Rúben engoliu a saliva. Mas, estando agora integrado socialmente, a juíza ficou-se pela pena suspensa por dois anos,
com regime de prova, mais nove meses sem conduzir. E foi assim que Rúben desceu o elevador, até os dentes negros lhe brilhavam à porta.
- O senhor foi condenado quantas vezes?, perguntei eu.
- Pá, 17! Fiquei envergonhado, 17 condenações! Já não me lembrava que eram tantas! Tenho uma filha, tenho emprego e pensei que não saía daqui para casa!
E foi-se embora. Assim se enche a gaveta da cabeceira de Rúben, que desta vez não foi engavetado.
*Jornalista