Vi, na passada semana, Ricardo Quaresma, no programa "F. C. Porto em casa", dizer aquilo que já todos tínhamos notado: que quando atuava em Portugal os jogos diante do Benfica eram os que lhe davam mais "pica": "preparava-me para chegar ao campo e rebentar com eles".
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Não pensei é que Quaresma voltasse a jogar um desses clássicos tão depressa. Dito e feito. O "Mustang" está de volta à nação e protagonizou um autêntico atropelamento (sem fuga, que não é homem de se esquivar). Poucos dias depois desta entrevista, lá estava ele, a rebentar com o benfiquista André Ventura, com notória "pica". E não foi por causa do seu benfiquismo que, assim de repente, até pode ser considerado uma qualidade de Ventura, comparando com os outros atributos que apresenta. Se o maior defeito do líder do Chega fosse o seu fanatismo por um determinado clube, estávamos nós bem. O pior é o seu fanatismo por ciganos. Ventura consegue inserir a palavra "cigano" em qualquer discurso, venha ou não a propósito. Parece que fez uma aposta com amigos, numa noite de copos, e agora tem de a levar até às últimas consequências.
- "Não compreendo que haja pessoas à espera de reabilitação nas suas habitações, quando algumas famílias, por serem de etnia cigana, têm sempre a casa arranjada" - disse Ventura em 2017, criticando, aparentemente, a dualidade de critérios na escolha das candidaturas ao "Querido mudei a casa".
- "Não sei porque teve a deputada municipal do PAN de se demitir. Teve a coragem de tocar neste ponto: há muitos casos, demasiados casos, de pessoas de etnia cigana envolvidas em maus-tratos a animais, sobretudo cavalos. Aquela deputada do PAN tem no Chega um lugar, se assim o desejar. Tem as portas abertas", anunciou Ventura no início de 2019, mostrando que o único critério de recrutamento para o Chega é dizer mal de ciganos. Sei de umas quantas tabernas onde terá facilidade em arranjar militantes.
Apesar desta postura anticiganos não lhe ter sequer garantido a vitória na corrida à Câmara de Loures, Ventura continua a apostar na mesma estratégia, como aquele treinador que parece ter enlouquecido e insiste no mesmo onze, apesar da falta de resultados. A chicotada psicológica parece estar cada vez mais próxima, apesar de Ventura continuar a prometer uma vitória na Liga dos Campeões aos apoiantes do Chega.
O homem que em tempos acusou António Costa de ser "um primeiro-ministro que em vez de estar preocupado com Tancos quer aparecer como padroeiro da comunidade cigana" foi fintado por este, com grande nota artística, no Parlamento. O que lhe deve ter custado especialmente, tendo em conta a tez do chefe do Governo... Se é para lhe fazerem uma cueca, que seja um deputado ariano. Outro rude golpe para Ventura deve ter sido perceber que esse famoso assalto de Tancos não foi perpetrado por ciganos. Estraga-lhe um bocadinho as estatísticas. Aqueles dados que nunca apresenta, preferindo uma espécie de "tenho a sensação que"... Ventura tem a sensação de que todos os ciganos vivem exclusivamente de subsídios do Estado, já o disse várias vezes, e tem agora a sensação de que os ciganos são os principais responsáveis pela propagação do coronavírus e precisam de um "plano de confinamento específico". Eu diria que é precisamente o contrário. Em primeiro lugar, se há comunidade que está preparada para o confinamento é a cigana. Estão muito mais habituados que nós ao convívio intensivo com parentes próximos, aposto que não começam a discutir logo ao fim das primeiras 24 horas, como eu. E depois, só quem nunca entrou num hospital é que pode achar que os ciganos têm aversão a cuidados de saúde. Tenho a certeza que farão zaragatoas de bom grado, e mesmo que apenas um seja suspeito de covid-19, vão todos, em excursão. Viste o que fiz aqui, André? Um parágrafo baseado em preconceitos, mas a brincar. É que os estereótipos que durante anos foram úteis para alimentar o anedotário - os ciganos que roubam, as loiras que são burras, os alentejanos que são lentos, o português que é sempre mais pateta que o francês e o inglês que com ele entram num bar - quando usados para fazer política transformam qualquer partido numa anedota. Já tínhamos rido do Chega várias vezes, mas ouvir o comentador de bola da CMTV dizer que "é lamentável que um jogador da seleção se envolva em política" foi a melhor punchline dos últimos tempos, reconheço. "Espero que as autoridades do futebol não deixem que isto se torne o novo normal", acrescentou Ventura. Percebemos assim que além de um confinamento específico para certas etnias é favorável a uma PIDE criada pela Federação Portuguesa de Futebol.
* Humorista