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É notável a capacidade de um homem para, depois de um acto muito estúpido, se enterrar no tribunal.
Nélson, que se diz soldador no desemprego, foi levantar um carro a um rent-a-car e o veículo não foi devolvido na data contratada. Passados dois dias do prazo, a companhia, que obviamente usa tecnologia de localização dos veículos, foi resgatar o carro a uma rua de Lisboa. E o que fez Nélson, quando viu que o automóvel não estava lá? Ligou a dizer que queria voltar e que pagava, pois tinha-se esquecido de uma coisa, mas responderam-lhe que o automóvel já estava no parque e que não era possível. Horas depois, no entanto, Nélson recebeu um telefonema a chamá-lo para ir buscar as coisas esquecidas, se quisesse.
Nesse intervalo, o funcionário do rent-a-car descobrira - nas suas cheirosas palavras - que o carro "exalava um forte odor a canabis." Nélson, por essa altura já andava num segundo carro alugado, um BMW, e lá foi com o seu amigo Armando. Mas no rent-a-car explicaram a Armando que só podia mexer no carro a mesma pessoa que o tivesse alugado. Armando gritou lá de cima:
- Ó Nélson, chega aí! e Nélson foi e meses depois estava no tribunal acusado de tráfico de estupefacientes:
- Sim, fui lá abaixo ao carro e tirei as minhas sapatilhas. Uma sapatilha tinha o haxixe lá dentro, o que supostamente Armando tinha deixado no carro...
- Supostamente, como?!
Porque Nélson, antes, não sabia de nada... Abriu o porta-bagagens, retirou a sapatilha com a droga e deram-lhe ordem de detenção. É que os, enfim, "supostamente" empregados do rent-a-car trabalhavam era na esquadra.
- Eu até lhes disse antes, a rir: vocês são da Polícia, não são?
Ó Nélson, adivinhaste, parabéns, és um ás a perceber as coisas. Mas agora defendia-se:
- Alugar um carro por causa de 80 gramas de haxixe? Não faz sentido o que eles dizem!
Nélson tinha ainda mil euros em notas de vinte num envelope e cerca de 300 em moedas, em saquinhos de plástico. Tudo "para pagar o aluguer do carro". Partira o mealheiro, exactamente como se partem os mealheiros, um homem de martelo na mão a escaqueirar o porquinho da poupança infantil.
Fez-se uma busca em sua casa e havia facas com resíduos de canábis, mas isso é fácil de explicar, Nélson tinha a trabalhar numas pequenas obras um amigo que também lá dormia e sempre a fumar. E a máscara não era para operações químicas de corte de cocaína, era uma máscara de soldador. E o frasco com restos de amoníaco também não era para cortar isso, era do seu material de soldador, mais uma vez. E as munições de pistola, disse:
- Não tenho arma e nem sabia que as balas são consideradas arma. Era uma colecção de balas, calhou serem todas iguais, até já tive mais!
No meio disto tudo, a Polícia partiu-lhe uma parede de pladur no quarto onde dormia com a sua mulher e o bebé, partiram tudo na esperança de que fosse uma parede falsa para esconder produto. Mas nada, não havia nada.
Só 16 gramas de cocaína no segundo carro, o BMW, mas obviamente foi a Polícia que pôs lá o pacotinho na porta, para o incriminar. E o haxixe, repetia Nélson, não era dele, era do ex-amigo Armando, que lhe tinha arranjado toda aquela confusão ao não devolver o carro e que prometera que ia assumir a posse do haxixe e agora vinha dizer o contrário, o traidor!
- Ó Nélson, chega aí!, gritou-lhe o amigo lá de cima.
E ele chegou-se ao carro que tresandava a haxixe. E agora aqui estava, no tribunal, a tentar dar sentido aos factos da sua vida.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia

