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De tempos a tempos faço uma escolha no armário e encho sacos de roupa para doar. Roupa boa que não uso porque já não serve, porque já não condiz com a fase da vida, ou que foi ficando intacta desde que foi comprada por impulso, nos saldos, para aproveitar a oportunidade, ou tendo em vista uma ocasião que teima em nunca chegar. Nessas ocasiões, pego sempre no casaco de malha azul-marinho que era da minha mãe. Fiquei com ele há uns anos, já um pouco desbotado e com malhas puxadas nos punhos. É um casaco de algodão canelado, de textura suave, com um azul profundo e bonito e os botões já arroxeados pelo tempo. O casaco ideal para uma noite de verão, levemente pousado nos ombros, depois de ter andado atado à cintura num passeio de fim de tarde. Confortável, pingão, com um corte característico do final dos anos oitenta ou princípio dos noventa, que já usei bastante, mas que foi ficando esquecido no armário.
Pego sempre no casaco para o incluir na remessa de roupa para dar. Olho para ele duas ou três vezes, hesitante. Por várias vezes cheguei a metê-lo no saco. Por várias vezes meti o saco na mala do carro. E por várias vezes conduzi, diligente, até à associação onde costumo doar, para desistir, ao abrir a mala, na hora da despedida. Acontece sempre o mesmo, num gesto rápido que resgata o casaco por impulso, encosto-o ao peito, enterro a cara no algodão azul-escuro e inspiro profundamente. Depois, volto a atirá-lo para a mala do carro (já vazia dos sacos de roupa) e trago-o novamente para casa.
Sou incapaz de me desfazer dele. Não o uso, mas não o consigo dar. Desconfio que haja algo naquele algodão puído que me recorde a infância, uma imagem (que não tenho presente) da minha mãe com ele, o aconchego de um abraço que me envolveu, um perfume que não se consegue sentir, mas que o meu cérebro persegue, como um cão que fareja o caminho de casa. Não sei. O que é certo é que, de todas as peças do meu armário, aquele casaco parece-me a mais confortável. Não de vestir, mas de respirar. É como um impulso primitivo, este de tentar inalar o tal perfume que não se sente, procurar o afago do algodão no rosto, o abraço sem corpo, atraída por um fiapo de memória profunda (como o azul).
Talvez seja melhor, então, que o assuma como um dos meus tesouros, como um amuleto, um atalho para a infância, um salto para o colo da minha mãe e que desista de me desfazer dele. Ou então que o devolva à sua proprietária original, para que o vista, para que tire uma fotografia com ele, ou para que me dê um abraço com braços lá dentro. Assim, sempre podemos criar memórias novas (com tónus e superfície), que deem um sentido menos subterrâneo ao meu apego pelo velho casaco largo que não consigo largar.