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A troika não vem cá para tratar da nossa vida, vem cá para tratar da nossa dívida. E, convém lembrar, fomos nós que pedimos aos malfeitores para virem tratar da nossa dívida, julgando, um pouco ingenuamente, que com isso viria a salvação da nossa vida. No espírito de muito indígena criou-se um balão de esperança, sustentado nesta brilhante tese: os doutos economistas do BCE e do FMI entrarão a matar e, para provar a sua força, dar-nos-ão, primeiro, umas valentes reguadas, como pena pelas loucuras acumuladas. Mas, a seguir, virão charters de dinheiro para que tudo retome o santo caminho que alegre e descuidadamente seguíamos.
Ora, para quem não tinha reparado, a troika está pouco interessada na nossa vida. Os cânones mandam dizer que, a seguir aos funcionários públicos, é preciso baixar o salário dos privados? Eles dizem! E dizem porque acreditam piamente no que dizem. Ora, assim sendo, não há castigo a aplicar a esta sábia gente.
É por isso que o charivari resultante das declarações de um dos elementos da dita se percebe um bocadinho mal. O primeiro-ministro foi, se bem percebi, o único a manter a sobriedade nos comentários à proposta de redução de salários no privado: "Se queremos ganhar competitividade, temos entre outros custos de contexto de atender também ao custo unitário do trabalho e, portanto, à moderação salarial", disse Passos Coelho em Angola, citado pela Agência Lusa. Bem vistas as coisas, não vai assim uma distância tão grande entre o pensamento do primeiro-ministro e a tirada dos homens da troika.
Sim, é verdade que o corte nos salários do sector privado é uma tese muito, muito discutível. Muito provavelmente, a economia assaparia ainda mais, por via da queda do consumo. O poder de compra dos portugueses levaria mais uma tremenda machadada, depois de ter vindo a ser sucessivamente "comido" pela carga fiscal e pela inflação. Sim, é verdade que tal medida introduziria no sistema mais um factor de injustiça, porque há empresas que podem manter a folha salarial e, claro, aproveitariam para a reduzir. Sim, é verdade que cortar salários que são já de miséria não é coisa que se recomende. Sim, é verdade que a competitividade do nosso tecido empresarial não aumenta pela via da redução salarial, mas antes pela inovação, pela investigação e desenvolvimento, pela criação de marcas com poder para se imporem lá fora, pela qualificação dos trabalhadores.
Tudo isto é correcto. Mas nada disto choca com o que pedimos à troika. O trabalho de melhorar a vida dos lusitanos não é da troika - é nosso. E, parece-me, está na altura de começarmos a pedir, a exigir, mais do que as medidas de urgência que nos impuseram. Está na altura de pedir, de exigir, que o Governo ataque, com força e convicção, as causas da estagnação da nossa economia. Esperar que a troika o faça é um absurdo, um erro histórico. A troika não existe para isso.