Deixou de ser preciso porque o leite agora é pasteurizado e o chá usa-se em pacotinhos. Como sempre, a facilidade trouxe perda de qualidade. O leite parece água e o chá não é chá mas pó de chá!
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É pena porque coar, ou seja, separar o sólido do líquido depois de ambos se terem misturado é uma função vital para quem quer conseguir perceber um pouco melhor o que se passa. Claro que, como no chá ou no leite, é preciso esperar que o chá abra e o leite ferva para só depois se destilar o que realmente queremos beber. E serenidade é coisa que não temos nem nos deixam facilmente ter.
Ou cabe na cabeça de alguém que um desafio tão importante e difícil como aquele que o presidente da República finalmente lançou é coisa para se resolver em dois dias? Ou que os partidos do arco da governação não demorem a assentar? Ou que os partidos mais "radicais" desistam de fazer a sua prova de vida?
Porquê esta fobia do "pântano", da "instabilidade que acresce à instabilidade", da "solução que não resolve", do "era bom mas não vai funcionar"? Não se ouve, vê ou lê outra coisa. Como se mais forte do que criar condições para que os obstáculos se vençam e, sobretudo, se descortine qual o melhor caminho para Portugal, esteja sempre a ânsia do mau agouro.
Sim, porque não há de ser só a dificuldade de coar a realidade do teatro político e da liturgia partidária. As duas têm de se misturar, de coexistir durante um tempo mas coá-las a tempo é mester de quem quer ver, e vendo, dar esperança.
Claro que o PS tem de separar o Governo do PSD e claro que o PSD tem de se doer. Claro que o BE tem de contra-atacar, chamando o PS e logo, logo (mesmo à porta do Rato), morder o PS porque "escolheu ficar com a direita". Claro que o PS mais à esquerda tem de tentar desacreditar o secretário-geral e claro que o secretário-geral tem de fingir que os acalma (prometendo a Alegre que não fará concessões).Claro que o CDS tem de fazer valer as suas antigas reivindicações sobre o caminho e as suas fronteiras irrevogáveis e claro que o PSD tem de afiançar que só mobiliza o partido, que nada tem a ver com o Governo. E claro que nestas danças e contradanças pode haver terceiros que finalmente vejam que a sua hora chegou e tomem o lugar que hoje é de outros.
Tudo isto está para a política e para os partidos como as marcações no palco para os atores ou para os bailarinos. Se não forem seguidas, perde-se a cena ou chocam os pares.
Todos sabemos isto. Tem de existir pela força das coisas. Como o leite fervido tem de ter nata e o chá, folhas de chá. Mas para beber o que fica, a realidade, destilada de acessórios e de rodriguinhos, não podemos tratar ambas as dimensões da mesma forma e sobretudo levar a crer que as primeiras, instrumentais, são as que contam. A comunicação social e os seus protagonistas têm um papel de grande responsabilidade nesta matéria.
Por mim, recuso o que não é essencial. A situação do país é de tal forma grave e o descortinar de um caminho para os próximos 10 anos de tal forma urgente que espero apenas e sinceramente que, por agora, os três partidos que assinaram o memorando se entendam e criem condições para, em nome de Portugal, conseguirem que o nosso ajustamento se faça em condições mais favoráveis, alavancado em políticas viradas para o crescimento e numa reforma da Administração pausada e funcional.
Tal entendimento para 8 a 10 anos não condiciona nenhum ato eleitoral e muito menos o livre funcionamento de uma sociedade democrática. Oferece apenas um caminho com garantias de estabilidade política, que não outras. Por isso mesmo poderá sempre ser rejeitado, pelos eleitores (e são tantos os que podem votar e não votam).
Podemos dar-nos ao luxo de perder o enfoque, de rejeitar uma grave sobriedade na atitude e na análise, de desperdiçar uma oportunidade para que nos apresentem uma proposta consistente, mas nas folhas do chá, depois de coadas, o futuro lê-se claramente: 18% de desemprego, -2,0 PIB, 122,9% PIB em DP, 5,5% de défice. Salário para médicos e professores só para mais um ano!