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No âmbito da Estratégia Nacional Anticorrupção, a AR procedeu à alteração e aditamento a alguns normativos do CP, CPP e leis conexas condensados na Lei 94/2021, de 21 de Dezembro. Um destes foi o art.o 40.º do CPP, relativo ao impedimento de juiz por participação em processo. Em minha opinião, impunha-se esta medida, impedindo o juiz de intervir na instrução de processo no qual durante a fase de inquérito houvera participado, praticado, ordenado ou autorizado acto previsto pelos n.os 1, respectivamente dos art.os 268.o e 269.o, que expressamente elencam aqueles actos. A solução está correcta, evitando a dualidade de funções contraditórias daquele enquanto juiz das garantias, por um lado, e juiz que preside à instrução, por outro. O problema é que o legislador não acautelou as consequências práticas desta inovação na organização judiciária do país, com um quadro de juízes previstos para os tribunais, sobretudo os do chamado interior e no território insular, nos quais estão colocados poucos magistrados, que rapidamente ficarão impedidos de presidir à instrução e participar no julgamento no mesmo processo, porque intervieram na fase de inquérito. O legislador não curou de, em tempo, adaptar a assertividade e acerto do aditamento ao referido normativo. Não considerou o sistema processual penal e os quadros de magistrados previstos para cada tribunal no seu global, na necessidade da respectiva articulação, retendo, sim, uma visão atomística das alterações cirúrgicas do CPP. Desconsiderando as consequências práticas desta inovação processual, a breve trecho assistir-se-á ao caos nos tribunais, num crescendo de impedimentos de o juiz presidir à instrução ou participar em julgamentos. A gestão do processo criminal tornar-se-á ainda mais complexa e os atrasos na sua conclusão serão exponenciais. O país não é só Lisboa, Porto, Coimbra, Faro... É também Graciosa, Cantanhede, Régua... E se nas grandes comarcas o número de juízes pode suportar, por algum tempo, os sucessivos impedimentos, nas de menor dimensão os juízes nelas colocados rapidamente estarão impedidos de intervir nos processos em que, na fase do inquérito, tiveram de proferir qualquer despacho. Ultrapassa o meu conhecimento a razão por que, no período de discussão do diploma, não houve alertas nem soluções apresentadas quer pelo Ministério da Justiça, quer pelos organismos representativos das magistraturas e dos advogados. É fundamental assegurar a imparcialidade, objectividade e a independência do juiz, mas não à custa da confusão e atrasos introduzidos na tramitação do processo, que se quer rápida e eficaz. A solução incompleta encontrada pelo legislador não é exequível pelos tribunais, sobretudo nos de pequena dimensão. Impõe-se que, rapidamente, se intervenha, a nível legislativo, suspendendo a aplicação destas alterações, a fim de procurar harmonizar-se a virtude da inovação nelas contempladas com o sistémico défice de magistrados.
*Ex-diretora do DCIAP
a autora escreve segundo a antiga ortografia