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Vinte e três dias depois de aberta a crise política com a carta de Vítor Gaspar e a demissão de Paulo Portas, eis-nos finalmente de volta à normalidade democrática. O Governo, recauchutado, pôde retomar de pleno direito as funções com que nos tem sobressaltado, o presidente deixou cair o seu excesso interventor e regressou tranquilamente ao seu habitual papel de vigilante distanciado, o PS, mais informado e com razões mais fortes para criticar o Governo, reassume-se como a alternativa única, as outras oposições insistem na falta de legitimidade deste Executivo e os mercados, depois de alguns solavancos, mostram-se agora tranquilos. Tudo está preparado para um verão sereno, contrariando os vaticínios de verão mais quente após 1975.
Parece, afinal, que nada aconteceu. Mas aconteceu e teve consequências. Desde logo, a saúde da coligação governamental. No início deste mês, estava em frangalhos. Ninguém apostaria na sua continuidade. Zangas entre os líderes, acusações mútuas, público reconhecimento por Vítor Gaspar do falhanço do modelo económico assumido pelo Governo, demissão de Paulo Portas com imediata revogação, pronta solidariedade dos membros do Governo do CDS, mal-estar nos dois partidos, com duras críticas internas ao comportamento dos dois líderes. A frase de Passos Coelho proferida no mais dramático momento da crise - "Não me demito, não abandono o meu país" - pareceu completamente fora da realidade e mais um assomo da sua insuperável teimosia.
Mas na passada quarta-feira o presidente da República relegitimou o Governo ao empossar os novos ministros, tal como lhe propôs o chefe do Governo três semanas antes. E deu nova vida à coligação. A teimosia passou a determinação e um primeiro-ministro a prazo aparece agora como tendo condições para terminar a legislatura.
Paulo Portas, por seu turno, conseguiu o que em política deveria ser impensável. Depois da sua solene declaração de renúncia, com fundamentação precisa para a rotura na defesa dos superiores interesses do país, voltou atrás pelas mesmíssimas razões e, com isso, ganhou um poder desproporcional aos votos que representa.
A crise que provocou foi, afinal, um jogo de póquer, em que do outro lado da mesa estavam o presidente da República e o primeiro-ministro. Portas jogou a "cave" e ganhou tudo, sem precisar de mostrar as suas cartas.
Uma coisa ele perdeu - o seu papel de "consciência " do Governo na proteção dos mais frágeis, que tanta popularidade lhe granjeou. Não mais será levado a sério, mesmo que o enorme poder que agora tem no Governo lhe permitisse continuar com a duplicidade que praticou até aqui. Por muitos anos que tenha de vida política, carregará sempre às costas a cruz da sua revogada decisão irrevogável.
No PS, viveram-se dias difíceis. A partir do momento em que António José Seguro aceitou dialogar, já aqui o disse antes, só poderia assinar um acordo que representasse uma clara inversão das políticas que tanto têm fustigado o país. O risco de deixar de ser a alternativa possível, ficando a oposição ao Governo apenas reservada aos partidos à sua esquerda, representaria uma séria limitação do jogo democrático e uma diminuição da esperança dos portugueses numa mudança de rumo. António José Seguro uniu o PS no apoio à decisão que assumiu e reforçou o papel do Partido Socialista como a única alternativa ao atual Governo.
Finalmente, o presidente da República. Não consigo encontrar mérito na sua decisão, que não seja a boa intenção de procurar conciliar o inconciliável. Cavaco Silva é um experientíssimo homem político mas, a meu ver, falhou na gestão desta crise. Sendo por certo injusta, acaba por persistir a ideia de que a solidariedade política teve peso na sua decisão.
Quanto à autoridade reforçada que se diz ter agora face à atuação do Executivo, penso exatamente o contrário. Ao ter viabilizado o Governo nos termos propostos, após uma crise política tão grave desencadeada irresponsavelmente, o Presidente não mais tem condições para atuar.
Restam-lhe os avisos à navegação. E que sucederá se o Governo o não ouvir? Vai dissolver a AR e marcar eleições quando numa situação tão grave como a que vivemos se recusou a fazê-lo? O presidente autolimitou-se, o que deixa a coligação mais à solta. E como o Governo, embora diferente, tem as mesmas duas pessoas a liderá-lo, nada nos garante que, no futuro, esta crise não se repita.