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A ironia da História é sobejamente conhecida, mas o dia de ontem foi particularmente demonstrativo das cambalhotas sarcásticas, normalmente tristes, que o tempo nos vai proporcionando. A vinte sete de janeiro celebra-se a libertação de Auschwitz-Birkenau, o hediondo campo de concentração que tantos judeus exterminou durante o regime nazi. A data passou a ser o Dia Internacional de Lembrança do Holocausto, assinalando a memória do genocídio de milhões de judeus, assim como opositores ao regime, homossexuais, ciganos, pessoas com deficiência, entre outros. Ora, oitenta anos depois, a segunda-feira vinte sete de janeiro foi o dia em que centenas de milhares de palestinianos exangues, enlutados e subnutridos saíram finalmente dos acampamentos de refugiados no sul de Gaza, para regressarem às suas vilas e cidades, totalmente arrasadas pelo regime israelita.
O cessar-fogo permite finalmente um regresso, mas se voltar a uma casa destruída, numa cidade em escombros, com muitos amigos e familiares mortos, não é propriamente um retorno, mas antes um recomeço praticamente impossível, tudo se agrava com as nuvens ameaçadoras que ainda pairam sobre Gaza. É que além da paz ser muito frágil, o novo xerife, Donald Trump, não se coíbe de expressar os seus planos para o território, demonstrando interesse em transferir a população para o Egito e para a Jordânia, para aproveitar o valor imobiliário daquela terra arrasada, mas com grande potencial. Um sionista israelita não imaginaria melhor plano: expulsar os palestinianos que restaram, para ocupar os valiosos terrenos à beira-mar com casas de judeus endinheirados e estâncias de veraneio.
Apesar dos maus agoiros, emociona muito ver a peregrinação daquele povo, que promete morrer pela sua terra, tentando voltar para casa, mesmo que a sua casa esteja em pó. Emociona ver a esperança que ainda têm de poder reconstruir as suas vidas, mesmo com tudo o que este ano e pouco de massacre desigual e impiedoso lhes roubou. E emociona que esta peregrinação, da qual nos chegam imagens impressionantes de uma coluna de milhares de pessoas rumando a norte, pela beira-mar, como um formigueiro humano de sobreviventes, se tenha iniciado neste dia simbólico.
Que o regime de Israel - Estado fundado precisamente depois do fim da segunda guerra, para acolher os sobreviventes do holocausto - tenha sido capaz de promover um genocídio em Gaza com esta brutalidade, parece-me particularmente triste. Mas que esta libertação aconteça no mesmo dia que se abriram as portas de Auschwitz é especialmente simbólico. Ainda para mais, num momento histórico em que tudo parece conjugar-se para a repetição trágica e há um cheiro insuportável a anos trinta no ar.