<p>Será um hábito velho, mas como só se manifesta de tempos a tempos até parece novo - ou tem ar de novidade, para quem não cultiva a memória. José Saramago já deve ter nascido assim, com o pé a fugir-lhe para a chinela da polémica, certamente a deliciar-se com as mais desbragadas reacções ao que diz e escreve, provocador bem mais do que q. b. Toda a gente sabe que é esse o seu perfil, mas há quem continue a sentir-se muito incomodado. E, pelos vistos, com ganas de atirar borda fora o prémio Nobel da Literatura.</p>
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O que disse sobre a Bíblia o autor de "Evangelho Segundo Jesus Cristo" que da sua boca não tenha saído noutras ocasiões, com estas ou semelhantes palavras? Se o homem é ateu impenitente, demasiado velho e rezingão para se converter, quem esperava diferente discurso? Aos que entendem a Bíblia como livro sagrado, o que disse deve ter chocado. É compreensível. Tão compreensível que muitos terão, simplesmente, levado as afirmações à conta do direito ao disparate, que todos podemos exercer. Ou, então, deram corda à suspeita de que o escritor montou uma descarada campanha de promoção de "Caim", a sua mais recente obra, para garantir o sucesso editorial. Truque antigo, mas não imoral.
Que se saiba, ninguém correu às livrarias para destruir "Caim" antes que contaminasse os leitores. O Vaticano fez saber que não contribuiria para o peditório da discussão. E, entre nós, as vozes da Igreja Católica que se pronunciaram souberam preservar a bonomia possível, dada a delicadeza do tema. O porta--voz da Conferência Episcopal, Manuel Morujão, falou em "claro exagero" da parte de Saramago e aconselhou-o a separar a crítica da ofensa (subentendido: não ofende quem quer). Já o teólogo Anselmo Borges colocou a controvérsia no devido lugar, ao dizer que a Bíblia autoriza "liberdade de interpretação".
É essa ousadia que Mário David não tolera a Saramago. O eurodeputado, que na biografia inscrita na sua página oficial na Net se apresenta como "cidadão do Mundo, fascinado por conhecer novas culturas e realidades, [que] já visitou 60 países", recusa partilhar a nacionalidade com quem, no seu douto julgamento, profere "imbecilidades e impropérios".
Não se trata apenas da expressão de uma opinião. Trata-se de uma espécie de eugenismo, que David - vice-presidente do Partido Popular Europeu e ex-secretário de Estado - parece ansioso por pôr em prática. Só com boa vontade pode ser tomado como disparate, porque não se limita a insinuar que a fogueira da Inquisição deveria ser o destino de tão ímpio personagem. Acusa Saramago, preto no branco, de não conhecer os valores - religiosos, claro - "que definem as pessoas de bom carácter". Ora aqui está um atestado de cidadania lusitana, que só Mário David passa. Esconda-se em Lanzarote, José...