Kadafi foi um carniceiro impiedoso a quem nenhuma pessoa decente gostaria de apertar a mão. É por isso chocante que dirigentes políticos de democracias constitucionais que em circunstâncias diversas o cumprimentaram cordialmente, que com ele fecharam negócios e tratados e a quem ofereceram armas e munições, nada digam sobre as imagens obscenas do seu cadáver. Como afirma Danilo Zolo, em artigo publicado no "il manifesto" de 22 de Outubro, o Direito internacional impunha que o tirano fosse "preso e processado" pelo povo líbio, com o apoio eventual do Conselho de Segurança das Nações Unidas. A NATO - tão atrevida na interpretação do mandato estrito do Conselho de Segurança que apenas lhe encomendava a "interdição do espaço aéreo líbio" - tinha obrigação de explicar que medidas tomou para prevenir mais este crime e porque não o conseguiu evitar.
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A invocação de razões humanitárias para o "uso da força" abriu um ciclo de perigosa subversão dos princípios de Direito internacional que vem sendo aceite com negligente condescendência quer no plano internacional quer no plano interno das limitações constitucionais dos poderes para fazer a guerra - "war powers". Marcou o início deste verdadeiro retrocesso civilizacional a "guerra contra o terrorismo" desencadeada por George Bush que culminou na invasão do Iraque, justificada como uma "guerra preventiva" para responder à ameaça iminente do uso por Saddam Hussein de "armas de destruição maciça" de que jamais se encontrou o menor rasto. Além da "guerra preventiva" e da "legítima defesa", inventaram-se novos conceitos "legais" como o de "combatentes inimigos" que permite o prolongamento indeterminado da detenção de seres humanos sem julgamento. A incapacidade para encerrar a prisão de Guantánamo foi até hoje o mais dramático fracasso da esperançosa presidência de Barack Obama. Bruce Ackerman, professor de Direito Constitucional na Universidade de Yale, questionou o presidente sobre a decisão de assassinar um cidadão americano, Anwar al-Awlaki, alvejado no Iémen por um avião não pilotado da Força Aérea. O artigo foi publicado em 7 de Outubro, pela revista "Foreign Policy". Awlaki era um pregador fanático tolerado pelos padrões generosos de "liberdade de expressão" e de "liberdade religiosa" correntemente aceites nos EUA. A decisão de o designar como alvo a abater fundou-se em informações dos serviços secretos que sustentavam o seu envolvimento operacional em actividades terroristas, mas não dispensariam o presidente de obter prévia autorização do Congresso para o fazer. Segundo Bruce Ackerman, estas decisões são confiadas a um grupo de composição variável, por nomeação ad hoc do Conselho de Segurança Nacional, na Casa Branca, sem intervenção directa do presidente que, porém, a pode rejeitar.
O constitucionalista de Yale evoca o comportamento de Obama, há três anos, quando recusou o uso da tortura no interrogatório de suspeitos que o seu antecessor caucionara, e denuncia a continuidade do uso dos "war powers", no Iémen e na Líbia, para além das circunstâncias extraordinárias em que o Congresso os autorizou, em 2001, pelo "Patriot Act". Invocando a Lei da Liberdade de Informação, o "New York Times" e Charlie Savage apresentaram uma queixa em tribunal contra o Departamento de Justiça para obter acesso ao conteúdo de um "Relatório" que o Governo pretende manter secreto, onde fixa o seu próprio entendimento dos largos poderes de excepção que lhe foram atribuídos através daquela famosa resolução do Congresso. Particularmente polémica é uma cláusula (secção 215) que permite ao FBI obter autorização judicial, apenas invocando "fundamentos razoáveis", para apreender quaisquer registos, livros, documentos ou meros apontamentos, junto de hotéis, hospitais, armazéns, universidades, bibliotecas, companhias de telecomunicações, cartões de crédito ou serviços de Internet, sem conhecimento das pessoas sujeitas a vigilância, por indícios que de alguma forma os possam relacionar com "o terrorismo internacional" ou actividades clandestinas. Se a excepção se transformar em regra, a democracia arrisca tornar-se, em breve, um adereço dispensável, nos EUA e no resto do Mundo...