O divórcio vai ser à bruta ou em versão suave?
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Eis-nos chegados ao dia do "referendo" na Crimeia. O dia do divórcio, em que os seus habitantes vão dizer se "desejam" ser independentes para depois se integrarem na Rússia. Para dizer a verdade, este é um daqueles jogos em que, conhecendo o árbitro, já estamos à vontade para antecipar o resultado. Por um lado, a presença militar russa condiciona, e muito, os votantes. Depois, aqueles que são contra a independência dizem que nem vão votar. Finalmente, e mais importante, a maioria de russos ou russófonos "ucranianos" irão mostrar uma inclinação óbvia pela "mãe pátria", seja ela de sangue ou de adoção (coadoção é que parece que não pode ser).
Em todo este processo há culpas dos dois "cônjuges", Kiev e Moscovo; e também dos seus "amigos", que meteram a colher quanto puderam. Mas, quando o conflito se tornou irreversível, esses mesmos "grandes" "amigos" logo começaram a assobiar para o lado, ou a gritar "mata" e "esfola".
Este é um caso possível de secessão. Isto é, de uma parcela territorial de um Estado deste se separar de forma unilateral para se constituir num Estado independente (a secessão em sentido estrito) ou para, logo depois de independente, se integrar noutro Estado (é este o caso da Crimeia: de secessão-incorporação).
Alguns dizem que a secessão é ilegal, porque é inconstitucional. Brilhante, profunda novidade. Talvez porque sou jurista (cada um tem as culpas que merece) fui aprendendo com o tempo os limites do próprio Direito. Ora, invocar-se a Constituição e o que ela dispõe num caso destes é resvalar para o absurdo: como é tão óbvio que até dói, não pode a Constituição prever ou acolher a sua própria negação.
Mas até este terreno "constitucional" é movediço. Tendo preparado bem o trabalho de casa, a Rússia fez com se neste referendo também se perguntasse aos "eleitores" se desejavam o regresso à Constituição ucraniana de 1992. Caramba, dir-se-á, apesar de tudo o referendo também admite que os votantes possam não querer a independência.
Nada disso. É que a Constituição de 1992 admitia que a Crimeia pudesse levar a sua autonomia para um plano equivalente ao da independência de facto.
Por conseguinte, se quisermos ver as coisas com alguma frieza e independência (mesmo com o custo de receber um mail em que nos qualificam como "porcaria de comunista"), haverá que dizer várias coisas que alguns poderão achar desagradáveis.
A primeira é que a Crimeia foi retirada à Rússia e "doada" à Ucrânia numa certa noite de 1954, quando o líder soviético de então, Nikita Krutschev, decidiu tal "generosidade", talvez por ele mesmo ser ucraniano, talvez porque (contam as más-línguas) estava bêbado como um cacho, talvez pelas duas razões juntas.
A segunda é que, quando a Ucrânia acedeu à independência, no início dos anos noventa do século passado, o documento fundacional (a tal Constituição de 1992) permitia à Crimeia formas de autogoverno quase idênticas à independência, que depois lhe foram retiradas.
Na sexta-feira, o MNE russo, Serguei Lavrov, esteve reunido com John Kerry, o secretário de Estado norte-americano. Quando se apresentaram à Imprensa, Lavrov declarou que as duas partes não tinham "uma visão comum" sobre a Ucrânia. Kerry, esse, deixou-se de ser cowboy e entreabriu a porta pela primeira vez a uma solução negociada.
É certo que, por ter falado com bom senso, quase ninguém ligou, mas eu conto. Kerry disse que a Rússia não tem que anexar a Crimeia, porque é possível garantir os seus legítimos interesses na região e os legítimos direitos dos habitantes na Crimeia sem se chegar à solução extrema da separação. Kerry devia ter começado logo por este tipo de proposta assim que tudo explodiu na Ucrânia. Mas também digo, como elogio: mais vale tarde que nunca.
Agora, permite-se à Rússia não ter que escolher perder quando tem o jogo quase ganho: basta, portanto, que o Parlamento russo não aceite, ou nem sequer se pronuncie, sobre o pedido de incorporação da Crimeia na Rússia.
Não sei é se Putin, a ganhar 3-0 a cinco minutos do fim, vai agora aceitar um empate, embora honroso. Logo veremos.