A liberdade é um paradoxo, sobretudo para aqueles que, como eu, sempre a assumiram como um dado e um direito adquiridos, incontestáveis e inquestionáveis. Digo um paradoxo porque talvez não haja, como a História abundantemente mostra, valor mais volátil do que a liberdade: ela só existe até ao momento em que nos distraímos, ou deixamos distrair; até ao momento em que descobrimos que, por a termos assumido como incontornável, ela nos escapou da mão; até ao momento em que uma punção que começa pequenina ganha corpo e toma conta de almas desinquietadas pela acentuada derrapagem das suas condições de vida. É por isso que liberdade implica responsabilidade: a responsabilidade de não deixar anquilosar os sustentáculos da liberdade.
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"A liberdade é um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens. Nada a iguala, nem os tesouros que a terra encerra no seu seio, nem os que o mar guarda nos seus abismos. Pela liberdade, tanto quanto pela honra, pode e deve aventurar-se a nossa vida", escreveu o incrível Miguel de Cervantes.
Em Trás-os-Montes, onde cresci e me fiz gente, os tempos que se seguiram ao 25 de Abril foram muito quentes, radicalizados até à estupidez e à inconsciência. Numa das célebres caravanas organizadas pelos partidos, então com um elevadíssimo poder de convocatória, Mário Soares, à altura líder do PS, foi obrigado a percorrer parte do concelho de Valpaços na mala de um automóvel. O Austin vermelho do meu pai seguia a meio dessa caravana. Chegados a Carrazedo de Montenegro, ainda hoje um dos mais fanáticos redutos do PSD em todo o país, uma louca lavradeira enfiou pela janela adentro uma foice. O meu pai escapou à morte por milímetros. Eu seguia no banco de trás. Passados 40 anos, consigo rever o episódio com uma impressionante nitidez.
Esta "aventura", na senda das que descreve Cervantes, foi apenas uma entre muitas que aconteceram nos bastidores onde se forjou o Portugal democrático e livre em que vivemos. Convém recordar: na educação, tínhamos 15 mil crianças no pré-escolar em 1970 (272 mil em 2011); na saúde, havia 94 médicos por 100 mil habitantes em 1970 (417 em 2012). A taxa de mortalidade infantil era de 77,5 por mil nascimentos em 1970 (3,4 em 2012); mais de 100 mil pessoas viviam em barracas em 1970 (6700 em 2011). Vivíamos, portanto, num país de vergonha. Hoje, não vivemos num país de vergonha, mas vivemos num país em que a democracia está cravada no limbo e a liberdade presa por finos arames. A degradação do Estado social é, creio, o mais perigoso e determinante fator para este estado de coisas. "
Como nos idos de 70, seguimos numa caravana em que, dia sim, dia não, alguma forquilha nos é apontada à carótida. Ter plena noção desse facto é o primeiro passo para não deixar fugir "um dos dons mais preciosos que o céu deu aos homens".