Faço parte de uma geração que tinha no liceu, como segundo idioma, a língua francesa. Lembro-me bem da importância que a cultura francófona tinha, então, em Portugal.
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Foi em francês que li, nos anos sessenta, as histórias infantis da condessa de Ségur. Foram as minhas primeiras leituras, a par das aventuras de Tintin e de Michel Vaillant que nos chegavam pela mão dos meus tios franceses. Em nossa casa, ouviam-se os discos de 45 rotações de Dalida, Silvie Vartan, Aznavour, Bécaud e Brel. Conhecíamos todas as letras das canções de Françoise Hardy e a primeira vez que dancei um "slow" numa festa de garagem foi ao som de "je t'aime moi non plus" de Gainsbourg e Jane Birkin. Em nossa casa lia-se o Le Monde, o Paris-Match, L'Automobile, o Historia; o Salut les Copains fornecia fotografias ousadas que recortava e colava nas paredes do meu quarto. Em nossa casa, havia discussões acesas sobre a política francesa, e lembro-me de querelas animadas sobre o discurso separatista de De Gaulle, quando gritou "Vive le Québec Libre" em Montréal, e sobre o surpreendente Maio de 68.
No princípio dos anos setenta, quando já lera as biografias históricas de Henry Troyat, e a conselho da avó Maria Amélia, que traduzia livros franceses para a livraria Tavares Martins, devorei os livros de André Malraux, e descobri "As memórias de Adriano", de Yourcenar, que continua a ser um dos meus favoritos. Apaixonei-me pelo cinema francês, depois de ter visto "Le jenou de Claire" de Éric Rohmer no cinema Estúdio, lá para os lados da Constituição, diverti-me com "L'aventure, c'est l'aventure" de Claude Lelouch, chorei com a "reprise" do seu "Un homme et une Femme". A primeira vez que ouvi falar de Mário Soares foi quando o meu tio Mário me trouxe, escondido na sua mala, o "Le Portugal Bailloné".
Apesar de ter ascendência alemã, e ter estudado em Inglaterra, tenho uma ligação muito mais intensa à cultura francesa. Muito daquilo em que acredito tem, na sua raiz, os escritos de Montesquieu e de Tocqueville., No fundo, continuo a acreditar que sem uma França forte não haverá Europa, porque o Hexágono, com as suas múltiplas fronteiras, é o coração do Continente.
Aflige-me, por isso, a perda progressiva de importância que a sua língua, a sua cultura, e a sua influência vai tendo no Mundo, o que é provável que resulte da dificuldade que os franceses têm em decifrar e racionalizar a sua história. Alguém me disse, um dia, que um país que continua a cunhar moedas de ouro a que chama Napoleão não tem o sentido da realidade. A verdade é que, desde Austerlitz, a França não tem uma grande vitória. Foi derrotada em Waterloo e nas Guerras Franco-Prussianas, sobreviveu à Grande Guerra porque os americanos invadiram o seu território enquanto a Alemanha implodia, resistiu por poucas horas à invasão de Hitler, colaborou com ele em Vichy, viu a sua armada ser destruída no Norte de África, sucumbiu e abandonou o seu império em Dien Bien Phu, antes de capitular em Argel. Mas, nem por isso deixou de ser, a mais importante das nações europeias, com um lugar garantido no Conselho de Segurança das Nações Unidas, com uma posição ambivalente na Nato e, também, aquela que, mais não fosse pelos benefícios que recolhe por via da política agrícola comum, mais tinha a ganhar com o aprofundamento da coesão europeia.
Infelizmente, quando a Europa começou a tremer e se afundou na dúvida, quando os alemães conseguiram a sua reunificação, apaziguaram as fronteiras orientais e perderam a perspectiva continental, a França abdicou de desempenhar o seu papel. Com Sarkozy, a França acreditou que poderia ganhar peso efectivo através do reforço do eixo Berlim / Paris e, a troco dessa ilusão, virou as costas ao projecto de Monnet, Schuman e Delors. É esta França que se encontra, agora, debaixo de fogo dos mercados, com a sua dívida sujeita a escrutínio severo.
O que de alguma forma era de temer. Só espero, porque sou europeu, que o drama francês não termine mal e que este não seja o último estertor de uma grande potência.