Como em tudo, é sempre mais fácil apontar a falta alheia do que ver, primeiro, os próprios erros. Mas, nestas coisas da governação, é melhor, para quem a exerce, abster-se de grandes julgamentos. Quase sempre em casa, o erro é o mesmo só que maior! Vem isto a propósito da tão comentada acusação do sr. primeiro-ministro sobre a alegada preguiça dos jornalistas e comentadores quando insistem numa apreciação negativa ou pelo menos ineficaz do atual Governo.
Corpo do artigo
Dizer que está tudo na mesma é, no dizer do dr. Passos Coelho, no mínimo falta de vontade de estudar a fundo os dossiês e de explicar que o que parece igual é, apenas, diferente.
Ou seja, por exemplo no caso do défice, não é a diferença entre despesas e receitas que está maior. Simplesmente passaram a considerar-se mais despesas. Os custos de mais empresas públicas passaram a ser tomados em conta, passaram a fazer parte do "perímetro orçamental" e, naturalmente, engrossaram as nossas responsabilidades oficiais.
Se assim não fosse o défice seria mais pequeno e, sobretudo, estaríamos a comparar duas realidades comparáveis e não duas coisas muito diferentes.
Percebe-se a frustração do sr. primeiro-ministro (sobretudo no final desta tão difícil legislatura) e até se desculpa o desabafo. Não é caso para o alarido que causou e, muito menos, para qualquer insidiosa suspeita sobre vontade de limitação da liberdade de expressão ou para qualquer cínica desculpa alegando o cansaço e o desgaste "evidente" da função.
Considero irresponsáveis e prejudiciais os comentários que semanalmente ouvimos a personagens públicas do maior relevo e que mais não são do que provocações de mau gosto ou simples exercício de uso indevido de informação privilegiada.
Dito isto, não pode infelizmente o chefe do Governo apontar o dedo a ninguém por falta de empenho. Isto porque, a máquina que dirige (por menor que seja o seu grau de influência sobre a mesma) dá os piores exemplos.
Que dizer dos contratos públicos invariavelmente leoninos em favor dos privados? Alguém leu e refletiu a fundo sobre as suas cláusulas? Alguém fez contas sobre os seus impactos? Alguém se deu ao trabalho de ensaiar todos os cenários possíveis para determinação das premissas mais corretas face à defesa do interesse público? Pensemos só nos cálculos sobre o tráfego esperado nas nossas pontes ou portagens e vejamos como a sua sistemática sobrevalorização penaliza as rendas que temos de transferir!
Que dizer da implementação de reformas tão vastas como a da Justiça onde ninguém, aparentemente, se deu ao trabalho de testar a operacionalidade do sistema? Não teria, é certo, de ser a sra. ministra a verificá-lo mas não podia deixar de se ter certificado que alguém o faria. Podia ter acontecido o que aconteceu mas, pelo menos, saberíamos quem é o responsável. Escusávamos agora de ir vendo e ouvindo vagas suspeitas de sabotagem.
Que dizer de tantos documentos estratégicos que se sobrepõem sem novidade ou diferença e que são sistematicamente apresentados como os faróis de um novo devir? Quem se deu ao trabalho de os ler minuciosamente e de os avaliar face ao passado (recente) antes de os lançar na praça pública? Estou, por exemplo, a lembrar-me do acordo tripartido com os parceiros sociais firmado em 2011 e do Pacto para o crescimento, emprego e fomento empresarial lançado em 2013. O primeiro tinha medidas e metas que nunca foram monitorizadas sequer. O segundo, apresentado mais de um ano depois, é quase igual ao primeiro e não deixou rasto. Teve, no entanto, direito a banda de música e foguetes. Se não for preguiça, é coisa muito pior!
Podíamos continuar. As articulações interministeriais que não se fazem, os prazos (por exemplo do Tribunal de Contas) que se suspendem uma e outra vez com base em sucessivas reclamações de documentos sistematicamente reenviados pelas câmaras municipais, etc., etc.
Preguiça é, portanto, uma acusação impossível para qualquer governante.
Até por que, como diz o saudoso Millôr Fernandes no seu "Poeminha de homenagem à preguiça universal: Que nada é impossível/não é verdade;/todo o mundo faz nada/com facilidade".