O "espectro" da reestruturação da dívida
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Ainda que não tivesse outros méritos, a iniciativa da apresentação, esta semana, do Manifesto "Preparar a reestruturação da dívida para crescer sustentadamente" - que tive o gosto de subscrever - cumpriu já um inestimável objetivo: destruir o falso dilema entre o cumprimento dos nossos compromissos perante os nossos credores, nos termos estritos em que o Governo entendeu executar o "memorando de entendimento com a troika, ou recusa-los liminarmente, rejeitando o dito memorando e as sucessivas revisões que o Governo lhe introduziu, declarando perentoriamente - "não pagamos"! Esta redução maniqueísta tem sido uma componente essencial da política deste Governo e motivo de grande perturbação no interior da própria coligação governamental e dos partidos que a integram, repercutindo-se também na relação institucional entre a maioria parlamentar e o Presidente da República... que se sentiu obrigado a despedir sumariamente dois dos seus consultores por ousaram subscrever o Manifesto, sem a prévia autorização do respetivo "empregador".
OManifesto não produziu nenhuma revelação escandalosa nem sequer inédita. A verdade é que feitas as contas à progressão dos encargos com os juros e amortizações devidos, a manterem-se as condições de pagamento atuais, o país nunca produzirá recursos suficientes para os satisfazer. Os subscritores do manifesto limitam-se a concluir que quaisquer esforços para pagar a dívida estão condenados ao fracasso, caso não sejam acompanhados por medidas vigorosas de promoção do desenvolvimento económico e do emprego. Por isso, a "reestruturação da dívida é condição sine qua non para o alcance desses objetivos" que só podem ser alcançados "num quadro de coesão e efetiva solidariedade nacional."
A precipitação com que vários governantes se precipitaram a condenar imediatamente tamanha ousadia, são a melhor demonstração da absoluta pertinência e oportunidade da iniciativa. Além dos estafados argumentos de que não existem alternativas e de que "os mercados não gostam!", dizem outros, num registo mais moderado, que a ideia não é oportuna, admitindo implicitamente que apenas não lhes convinha, por agora, tratar tal assunto "em voz alta"... Porém, está irremediavelmente desfeito o álibi com que o Governo procura colocar a salvo de recriminações as suas políticas de asfixia económica, de desmantelamento dos serviços públicos, de empobrecimento forçado dos cidadãos e de destruição do Estado de Direito Social. O manifesto devolve à sociedade portuguesa o debate público que por todos os meios tentaram amordaçar. Regressou a luta política democrática e admitiu-se a ponderação de propostas e soluções alternativas.
Um Manifesto de oito páginas não é, nem pretendeu ser, um programa de governo. Foi um exercício minimalista e inteligente de sintonização de algumas ideias transversais aos mais diversos setores da sociedade portuguesa e de explicitação de graves preocupações amplamente reconhecidas e partilhadas. Não é por isso justo criticar o Manifesto por tudo aquilo que lá não está nem podia estar, como a reforma do Estado e do sistema político ou a reestruturação da economia. Ficou lá apenas o que reflete o consenso essencial sobre a missão da Europa, a defesa da democracia e o respeito pela Constituição. O depoimento ponderado e construtivo que Miguel Cadillhe lavrou neste espaço do "Jornal de Notícias", na passada quarta-feira - O Reformador e o conselho dos 70 - representa precisamente o tipo de contribuição crítica que o Manifesto pretendeu promover. O que se demonstra é que o universo dos que advogam a necessidade de reestruturar uma dívida insustentável submerge largamente as divisórias entre maioria e minoria ou Governo e Oposição. Uma oportunidade para repor a exemplaridade do exercício da cidadania.