À pergunta "Quem concorda com a carga fiscal resultante da aplicação das tabelas de retenção na fonte anteontem conhecidas?", responderão, aposto singelo contra triplicado, 100% dos portugueses: "Eu não!". E à pergunta "Quem entende que a reforma do Estado tem de passar, inevitavelmente, por cortes no Estado social?", responderá, aposto singelo contra dobrado, uma larguíssima percentagem dos portugueses: "Eu não!". É da vida: ninguém gosta de chegar ao final do mês com menos dinheiro no bolso, como ninguém gosta de perder direitos que dava por adquiridos para o resto dos seus dias.
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Sucede, muito simplesmente, que não é possível ter uma coisa e a outra ao mesmo tempo. As pavorosas tabelas de retenção na fonte (a parte do salário que a empresa retém no final do mês para entregar ao Estado) devolvem-nos, com inusitada nitidez, a imagem do país que somos, do país que permitimos, todos, que fosse construído por uma classe política irresponsável, sim, mas sempre coberta pela anuência de um povo que julgou poder viver eternamente no melhor dos mundos.
É olhar para os exemplos. Para se poder sustentar, o Estado transforma agregados familiares com 80 mil euros de rendimento bruto anual em gente rica e abastada. Um absurdo. O Estado começa a carregar na retenção na fonte a partir de salários brutos de 595 euros. Uma enormidade. O Estado duplica o valor da retenção na fonte a quem aufira 700 euros brutos. Uma monstruosidade. E por aí adiante, numa escalada imparável, porque imparável e insaciável é o "monstro" criado nos anos de vacas gordas e mesmo nos anos de vacas já com nítidos sinais de anorexia. Acresce: é escassa a hipótese de que não será necessário continuar a saciar-lhe a gula, mais lá para a frente.
O ponto a que chegamos fez-me recordar a fábula da máquina voadora construída por um homem (supostamente) engenhoso. No dia do grande teste, a máquina estourou num ápice, o que mereceu o seguinte comentário do engenhocas: "Palavra de honra que fiz tudo o que era preciso para demonstrar a exatidão dos pormenores. Os defeitos, esses, são puramente fundamentais". O povo convidado para o evento ficou satisfeito com a declaração - e iniciou-se, logo ali, uma recolha de fundos para o homem construir a segunda máquina.
A máquina é o Estado. O engenhocas é a caricatura do primeiro-ministro (deste e dos antecessores). O povo somos nós. A questão é: esta "recolha de fundos" não pode continuar por muito mais tempo, porque o povo não aguenta. Ou seja: temos de mudar a "máquina". Vale o mesmo dizer: temos de decidir se queremos manter este nível de despesa (o que só se faz com elevadas cargas fiscais), ou se queremos cortar na despesa. Certo, certo é que temos mesmo de mudar de vida.