Fomos surpreendidos, há dias, pelo teor do prefácio que o economista Cavaco Silva escreveu para o Presidente da República. O prefácio tece importantes considerações sobre o que as regras europeias das finanças públicas podem implicar para Portugal.
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O Estado regrado...
As principais regras europeias incidem sobre duas variáveis interligadas: o défice e a dívida do Estado. Aqui tomo o Estado em sentido amplo, abrangendo todas as administrações públicas e equiparáveis. Se simplificarmos as regras, poderemos entrever cinco palavras-chave em redor daquelas variáveis. São elas: PIB; equilíbrio; excessivo; gradualismo; estrutural. O relativizador é o PIB, ele aparece sistematicamente a dividir os indicadores (rácios). A regra do equilíbrio orçamental impõe que o défice total não seja pior do que 0,5% do PIB. O qualificativo excessivo ocorre quando o défice total ultrapassa 3% do PIB; ou, aceitemos o uso extensivo da palavra, quando a dívida ultrapassa 60% do PIB. O gradualismo caracteriza o ritmo de aproximação anual às regras do défice e da dívida, salvo se houver um programa troikiano de intervenção, que acelere tudo. O conceito estrutural requer que, nas citadas regras do défice, assim as interpreto, este seja recalculado sem os efeitos do ciclo económico (recessão, expansão, etc.) e de medidas pontuais. Requer ainda que, havendo desvios estruturais às regras, as políticas contra os desvios sejam, elas também, estruturais, permanentes, irreversíveis, muito mais do que meramente conjunturais ou intercalares. Assim deve ser balizado o caminho de umas finanças desregradas para umas finanças regradas.
A dinâmica da dívida...
O saldo público primário, que se distingue do saldo total por não incluir os juros, é um ponto nevrálgico das finanças. Aí desaguam os efeitos e defeitos das medidas conjunturais. Desagua, sobretudo, a inexistente reforma estrutural do Estado. Como diz Alberto Castro, o saldo primário é um eufemismo da reforma do Estado. Juntando-lhe o crescimento nominal do PIB e a taxa média de juro "implícita" de toda a dívida pública, obtemos os ingredientes da chamada equação da dinâmica da dívida, que comanda matematicamente o andamento crescente ou decrescente do rácio "dívida pública/PIB". Pois o Presidente vai ao ponto de concretizar, no prefácio, valores desta equação. O quadro inclui esse cenário do Presidente e um cenário do primeiro-ministro, bem como um cenário meu, acompanhado de gráfico. A "renegociação honrada" que proponho, conforme vimos no artigo anterior, subjaz à taxa de juro de 3%.
E entre nós, o Estado regrou-se?
Não, estruturalmente não se regrou. O Reformador não seguiu, ou ainda não seguiu, por esse caminho. O que foi feito pelo Governo tem muito de transitório. Os cortes da despesa pública, ou os agravamentos da carga fiscal e parafiscal, têm sido anunciados e aplicados, em grande parte, como políticas passageiras e reversíveis. Claro está que um observador destas coisas poderá pôr a hipótese de reserva mental do Reformador: as medidas mais impopulares, por vezes mais injustas, seriam tomadas e juradas pelo Reformador como intercalares, com o fito porém de as arrastar no tempo para depois as virar definitivas. É uma prefiguração perversa, que pessoalmente rejeito e nem acho plausível. Todavia, restarão dúvidas legítimas, como as que indico de seguida. Por que razão escassearam até agora as medidas estruturais regrantes, em quase três anos tão propiciadores do autêntico reformismo do Estado, em plena maioria parlamentar e em pleno pretexto troikiano? O que foi que amedrontou o Reformador no campo das medidas estruturais e o espevitou no campo das medidas conjunturais? Como foi possível que ficasse por realizar a reconceituação estrutural das funções do Estado e a reconversão estrutural dos regimes públicos, quando há muito se sabe que o Estado não tem, perigosamente não tem, condições estruturais de sustentabilidade? O que terá congeminado o Reformador quando, de mãos quase vazias, consentiu que parolamente nos exibissem um esquema, um esquisso, um guião, de uma futura eventual reforma do Estado?
Por conseguinte, e a meu ver, fez bem o Presidente ao prefaciar um livro institucional com a questão estrutural das finanças regradas. A questão é de políticos muito mais do que de tecnocratas.
