O Natal faz-me sempre lembrar um filme. E curiosamente não é um daqueles filmes que passam sempre no Natal. É o "Groundhog day" (Feitiço do tempo), em que um meteorologista da televisão vai fazer reportagem sobre o "Dia da marmota" e fica preso numa armadilha que o faz (re)viver o mesmo dia para sempre.
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O Natal também parece sempre o mesmo dia, seja qual for o ano. É certo que há pequenas diferenças. Nalguns anos dá o "Sozinho em casa 3", noutros os programadores percebem que é estupidez passar um péssimo filme, que nem conta com Macaulay Culkin, em certas consoadas a nossa mãe faz rabanadas, noutras lembra-se do cheiro a fritos que só saiu lá de casa em outubro, e compra fora, até pode ser que um ou outro familiar habitualmente presente na mesa de jantar vá desaparecendo... o tio Armando porque faleceu, a tia Selma porque se fingiu de morta, não atendendo o telefone ao marido, para fugir com o amante para as Canárias... há pequenos pormenores da paisagem que se vão alterando, mas a fotografia é sempre a mesma. Uma mistura de nostalgia e déjà-vu, com Natal dos Hospitais, piadas sobre bolo-rei e anúncios de Ferrero Rocher. Parece que já não há nada por inventar no Natal.
Sinto-me, todos os anos, uma Margarida Rebelo Pinto, a fazer autoplágio. Estou sempre com medo que irrompa pela casa adentro o João Pedro George, autor de "Couves e alforrecas", livro que desmascarava as repetições constantes das mesmas frases em vários volumes da obra de Rebelo Pinto. Tenho medo que uma espécie de "alta autoridade para os presentes natalícios" me bata à porta depois da meia-noite e diga alto o que todos comentam, entredentes: "A Joana anda a oferecer os mesmos presentes desde 2001!". Sempre os mesmos perfumes (enfiados em magníficos "coffrets", que é uma coisa que só se vende no Natal), as mesmas velas, as mesmas agendas. Na verdade, antes fossem precisamente as mesmas coisas. Podia passar como medida ambientalista e ainda era aplaudida de pé por todos, menos por aquele tio negacionista do aquecimento global. Mas não, são sempre coisas diferentes, iguais às coisas do ano anterior. Estou só mesmo a poluir, e a arranjar problemas às outras pessoas, que se veem obrigadas a ir para grande superfícies comerciais durante os saldos trocar aquelas tralhas. Até as falas, na noite de Natal, parecem repetidas. A avó que diz "não era preciso gastarem dinheiro comigo", a mãe que exige "guardem o papel de embrulho, cuidado, não rasguem!", o pai que comunica "tens aí o talão, caso seja preciso trocar", a tia que entra em pânico quando vê que não tiraram a etiqueta com o preço (como se não estivéssemos cansados de saber que aquela caixa de After Eights custa 4,99€), o irmão que diz que não gosta da nossa prenda e gera mau ambiente, o sobrinho que nos obriga a montar um brinquedo com instruções mais complicadas que um manual de física quântica... O meu serão de Natal podia perfeitamente ser transmitido na RTP Memória.
Há uma coisa que está diferente, e isso é digno de nota: aquelas horas de espera até à meia-noite, para poder abrir os presentes. Quando tínhamos cinco ou seis anos pareciam uma eternidade. Agora parecem duas eternidades inteiras. É que parecendo que não, antes jogávamos Uno, e "Quem é quem" para matar o tempo. Agora tomamos ansiolíticos para não matarmos o nosso primo mais novo, que pergunta, a cada três minutos, quanto tempo falta, e se lhe emprestamos o iPhone, em vez de ir jogar "Quem é quem".
Até o dia seguinte, o dia que seria da ressaca, não fosse 25 também de festa (mal pensado, este calendário), é feito de repetições: os caixotes do lixo transbordantes de papel de embrulho (filhos de outras mães, que não a minha, que permitem que o papel dos presentes seja rasgado à bruta), os restos que ninguém quer comer (não há nada pior que fritos com dois dias, já a saber meio a calda de açúcar, meio a ranço), as lojas todas fechadas para balanço, a rua deserta, e a sacramental pergunta a surgir via SMS: "O que fazes na passagem de ano?". Não acham que o fim de ano também parece sempre o mesmo dia, todos os anos? As passas, o champanhe, a nota no bolso, o pé direito, as cuecas azuis, as reportagens sobre o ano novo na Austrália, ou o "Dia da marmota", ou lá o que é, e nós a pensar "comparado com isto, o Natal é óptimo!".
Humorista