A parábola contada pelo cardeal Tolentino de Mendonça, segundo a qual uma antropóloga, quando interrogada por um aluno sobre qual seria o mais primordial sinal de civilização, terá respondido "um fémur quebrado e cicatrizado", foi, num acontecimento político raro, a essência das mensagens do 10 de Junho de 2020.
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Luís de Camões desconfinou Portugal (ainda nas palavras de Tolentino) e a pandemia desconfinou os discursos do 10 de Junho. Com naturalidade para um cristão convicto como o cardeal e sem tentações para um cristão convicto como Marcelo, ambas as mensagens mantiveram intacto o capital humanista do seu conteúdo.
A viagem que implica tempestades, as raízes que se procuram e entrelaçam como imagem do nosso destino comunitário, a compaixão que procura a cura do próximo, a atenção à nossa casa comum, o lugar único e inviolável que cada um ocupa na construção do todo e, sobretudo, o valor dos grupos mais frágeis e/ou mais desprotegidos, nada foi beliscado por recados ou remoques mais ou menos dirigidos.
Será exercício de muita imaginação e criatividade alimentar um comentário mediático ou partidário belicoso a propósito das mensagens deste dia.
Mas, por ser assim, também emerge mais acutilante o desafio. Não perder a oportunidade. Não perder a oportunidade de pensar nos que mais precisam em união de princípios e de vontade. Não perder a oportunidade de apoiar e investir nos que estão na linha da frente dos cuidados de saúde. Não perder a vontade para escolher, convergir, decidir e agir num modelo de governação onde todos desempenham o seu papel.
Este já é um resumo da minha lavra. Mas não trai o sentido de nada do que foi dito.
À pandemia e suas terríveis consequências junta-se a circunstância de um momento eleitoral em que o alegado principal candidato tudo tem a ganhar com um consenso patriótico e performativo.
Será, portanto, duplamente incompreensível se desperdiçarmos a circunstância em nome de cálculos pessoais ou de grupo.
"Acordemos, pois, para o que temos de fazer!".
Analista financeira