Não sei se o leitor se recorda de tudo o que a imprensa espanhola disse, há pouco mais de um ano, quando Portugal teve de recorrer à ajuda externa. Nessa altura, os "nuestros hermanos" lembraram-nos que esse era um problema nosso e, distanciando-se de nós, acusaram-nos, com alguma razão, reconheça-se, de não termos agido tão cedo quanto eles. De facto, Zapatero optara bem cedo por fazer reformas que Sócrates sempre recusou, e teve a coragem de sacrificar o seu futuro político a bem da razão.
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O que então já se suspeitava, contudo, é que os espanhóis, não tendo todos os problemas que nós tínhamos, tinham um outro problema que nós não tínhamos. Qualquer pessoa minimamente informada sabia que a Espanha teria, mais cedo ou mais tarde, de enfrentar as consequências da sua gigantesca bolha imobiliária, que não se chegou a formar em Portugal porque a nossa economia há muito que estava em situação de profunda anemia. Ou seja, era impossível, já nessa altura, ocultar o facto de haver, em Espanha, dezenas de milhares de habitações desocupadas que tinham, como espelho, uma dose maciça de ativos imobiliários sobreavaliados e, por isso, tóxicos, com um potencial de menos-valias que não estava espelhado nas contas da banca espanhola.
Enquanto isso, o Banco Central Europeu tratava de fazer exigências aparentemente draconianas à banca. O termo "stress test" entrou no léxico diário dos nossos jornais. Em Portugal, os bancos tiveram, por isso, de reforçar os seus capitais, o que reduziu, como se sabe, a liquidez da nossa economia. Por incompetência ou negligência, o problema espanhol foi sendo esquecido. A supervisão do Banco Central Europeu, que está na mão de gente muito competente e experimentada, como é o caso do nosso Vítor Constâncio, limitou-se a olhar para as aparências e a tomar como bom aquilo que não poderia deixar de ser mau. As agências de notação, é claro, apenas olhavam ao que era óbvio. Afinal, eram elas que garantiam que o Banco Lehman era um triple A em vésperas da sua falência.
A verdade, porém, é que a realidade só pode ser escondida durante algum tempo. Por muito que a Espanha fosse insistindo em recusar a emergência, por muito que os seus políticos se recusassem a admitir que também tinham um problema sério, os sinais de que a crise lhes iria bater à porta eram claros e evidentes.
E, à medida que Espanha entrava em recessão, e recusava cumprir com as metas do Pacto de Estabilidade e Crescimento, o problema de liquidez da sua banca passou a ser impossível de ocultar. Agora, e por muito que os espanhóis garantam, sucessivamente, que não precisam de resgate, ou que não aceitam as condições draconianas que foram impostas a Grécia, Irlanda e Portugal, o que se sabe é que a doença europeia bateu à porta da quarta maior economia europeia.
O problema que se circunscrevia aos pequenos, e que já ameaçara a Itália, atingiu um dos grandes. A doença grave já não pode ser combatida com meros paliativos. Já não afecta, apenas, os pequenos países periféricos. A crise atingiu uma das grandes economias europeias.
E chegamos ao dia do tudo ou nada. A dimensão da crise espanhola já não pode ser contornada com adiamentos sucessivos. As consequências para a Europa e para a moeda única serão fatais, e ninguém sabe ao certo se essa consequência ainda pode ser evitada. Estaremos melhor do que estávamos? Creio bem que não, porque a nossa economia depende, em larga medida, da economia espanhola. Valha ao menos a esperança de que, finalmente, os líderes europeus compreendam o que se passa. A seguir a Espanha virá a França e, por fim, a Alemanha. Gostem ou não gostem da ideia, os alemães terão agora de compreender que o seu destino está indelevelmente ligado ao nosso. Podem estar na primeira classe, podem-se entreter a recriminar os pobres que já caíram ao mar, enquanto ouvem os violinos a tocar mas, quando o Titanic se afundar, vão acabar como nós, nas águas negras e geladas da crise.