Um tribunal egípcio condenou à morte, sábado passado, Mohamed Morsi, o primeiro presidente democraticamente eleito na história deste país milenar, deposto pouco mais de um ano após o início de funções, por um golpe de Estado organizado pelos militares.
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Juntamente com o ex-presidente, cerca de uma centena de outros militantes da "Irmandade Muçulmana" - a força política que tinha vencido as eleições - foram também condenados à pena capital, no termo de um polémico processo judicial irremediavelmente contaminado pelas suspeições de falta de isenção dos juízes e a negação de direitos elementares de defesa aos acusados. A natureza política do julgamento é flagrante. Os militares egípcios deixaram crescer a impopularidade de Morsi, alimentada por erros graves de governação que alienaram boa parte da sua base social de apoio, para desferir o golpe e prontamente reverter uma transição democrática que, inevitavelmente, sempre seria longa e difícil. As sentenças de morte agora decretadas, ainda que a sua execução possa vir a ser travada, são o epitáfio triste e doloroso de uma "Primavera Árabe" de que, hoje, resta apenas um único caso de sucesso, na Tunísia.
A decisão do tribunal egípcio oferece também ocasião oportuna para evocar um dos mais célebres discursos de Barack Obama, proferido no Cairo, no dia 4 de junho desse ano, já tão distante, de 2009 ("Dez discursos pela paz", Fio da Palavra, Porto, 2010). Obama começou por apontar os principais focos de tensão que, quanto a si, constituíam então as principais ameaças à paz mundial:
Em primeiro lugar, a invasão do Iaque. "Hoje a América tem uma dupla responsabilidade: ajudar o Iraque a construir um futuro melhor e deixar o Iraque aos iraquianos. (...) A soberania do Iraque pertence-lhe". Seis anos depois, os terroristas do "Estado Islâmico" conquistavam a cidade de Ramadi e continuam a controlar grande parte do território do Iraque e da Síria, aproveitando-se da fragilidade de sociedades profundamente desestruturadas por guerras permanentes.
Depois, abordou o conflito israelo-palestiniano com grande frontalidade: "Que ninguém tenha dúvidas: a situação do povo palestiniano é intolerável. E a América não vai virar as costas à legítima aspiração dos palestinianos à dignidade (...) e a um estado próprio. (...) todos temos a responsabilidade de trabalhar para o dia em que as mães israelitas e palestinianas possam ver os seus filhos crescer sem medo".
Em terceiro lugar, reafirmou o seu empenhamento na construção de um Mundo sem armas nucleares a propósito dos esforços para chegar a um acordo com o Irão, o que acabaria por conseguir, já no decurso do corrente ano de 2015, embora acirrando o Governo extremista de Israel, liderado por Benjamim Netanhyau, vencedor tangencial das últimas eleições.
Ao longo do discurso, soube denunciar os estereótipos com que habitualmente se procura estigmatizar o Islão. Confiante na possibilidade de "um novo começo", defendeu energicamente a democracia, reconhecendo porém que "nenhum sistema de governo pode ou deve ser imposto por uma nação a outra". E falou por fim da liberdade, da tolerância, dos direitos das mulheres, da importância da educação e do desenvolvimento económico. E repetiu: "Temos o poder de construir o Mundo que queremos mas só se tivermos a coragem de meter ombros a um novo começo". Um balanço amargo, enfim, que se adivinha particularmente penoso, desde logo, para o próprio autor.
Foram grandes e audaciosas as esperanças suscitadas pelos levantamentos democráticos que vertiginosamente percorreram os países árabes a partir de 2011. Temos que preservar essa poderosa inspiração até que chegue o momento em que o Mediterrâneo possa reencontrar finalmente a sua vocação ancestral, enquanto espaço de comunicação entre continentes, lugar de convivência pacífica entre os povos que habitam as suas margens, de diálogo e partilha de culturas, de coexistência de crenças e construção de civilizações.
PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL