A crise de representação democrática está diagnosticada.
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O enfraquecimento global das soberanias estaduais e a sistemática deceção de expectativas dos eleitores perante o desempenho de sucessivos governos, aprofundaram o fosso entre governantes e governados e acentuaram o descrédito das instituições públicas, com a perda da confiança indispensável à legitimação das hierarquias sociais. A dissecação das causas do contínuo crescimento da extrema-direita e da popularidade das suas propostas explicam a decadência das formações políticas tradicionais. Tornou-se claro o esgotamento das fórmulas habituais de organização política das democracias, mas não será por ignorância ou distração que não surge remédio para a cura...
A fragilidade dos sistemas de representação democrática agravou-se com a decadência dos mecanismos habituais de mediação que as novas tecnologias da informação dispensaram, apoiadas por uma ilusão de transparência e participação alheia aos procedimentos clássicos. A simplificação aparente dos critérios de escolha iria alterar de seguida os critérios de destituição: uma resposta desastrada, uma suspeita de conduta indevida, a ausência, a omissão ou qualquer indício verosímil de fracasso. A tentativa de destituição do ex-presidente Bill Clinton é o exemplo mais notório, mas abundam os "incidentes" de demissões devidas a mera fanfarronice, convites para espetáculos desportivos, omissão de um dever declarativo, uma suspeita, uma notícia insidiosa. Assim, a fixação de um nexo de responsabilidade objetiva acabou por dispensar o esforço de ponderação das circunstâncias e motivações subjetivas, por irrelevantes, a culpa tornou-se um arcaísmo inútil e, por fim, a responsabilidade política e a prestação de contas transformaram-se num jogo de sorte ou azar.
A força disruptiva do mais recente surto epidémico é o acontecimento mais curioso e relevante da curta história deste século. O modelo de combate ao novo vírus foi estabelecido pela República Popular da China e, no essencial, o método do confinamento em larga escala dos infetados e suspeitos generalizou-se, apesar de apenas algumas semanas antes ainda se admitir como evidência que a terapia musculada dos chineses nunca seria replicável em democracias liberais! Os neofascistas italianos logo cavalgaram o medo e já reclamam medidas ainda mais musculadas! Em Portugal, já se exige uma revisão constitucional... para limitar os direitos e as liberdades garantidas pela Lei Fundamental! A facilidade com que o discurso securitário irrompeu, sem que ninguém consiga desvendar ainda a dimensão real da ameaça que transporta o novo vírus, é a mais flagrante demonstração da crise de representação democrática de que tratamos aqui. Voltaremos ao assunto na próxima semana. Mas, entretanto, acatemos as recomendações da Direção-Geral da Saúde.
*Deputado e professor de Direito Constitucional