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1.Foi uma intervenção "muito clara" e não se arrepende "de uma única linha", avisa o presidente da República. Ou seja, mantêm-se intactas aquelas últimas linhas do discurso, em que remetia para os deputados a responsabilidade de escolher entre um Governo PSD/CDS em plenitude de funções, ou um Governo PSD/CDS em funções, mas sem plenitude. Um Governo de gestão, portanto. Acontece que tentar prever se isto significa que Cavaco Silva manterá a recusa de um Governo liderado por António Costa é um exercício inútil. Como sempre, o seu discurso deu origem a múltiplas leituras, o que diz tudo sobre a sua clareza, ou falta dela. E o remate discursivo foi sibilino, ou seja, suficientemente explícito para se perceber a ameaça aos socialistas, mas suficientemente defensivo para permitir uma reviravolta. O presidente prometeu voltar a falar amanhã, na tomada de posse do novo/velho Governo de Passos, mas não virá daí uma resposta clara à pergunta que interessa: o que fará quando (e se) o programa de Governo for rejeitado e aparecer uma alternativa socialista? Ainda bem. O país não seria o mesmo, se fôssemos capazes de perceber, à primeira, ou até à segunda, não tanto o pensamento, que é pobre, mas a estratégia de Cavaco. A análise política, pelo menos, ficaria mais pobre.
2.Sobre as negociações para a formação de um Governo de Esquerda, têm-se ouvido muitas coisas. Que os salários da Função Pública são para repor num ano; que o corte nas pensões mais altas é para terminar de imediato; que a sobretaxa de IRS desaparece mais depressa; que a taxa de IVA para a restauração volta aos 13%. Tudo boas notícias para a classe média. Sabe-se é pouco quanto a propostas comuns para pôr o país a crescer, para criar emprego, para travar a sangria migratória, para resolver a crise demográfica, para reduzir a pobreza. Sendo que as devoluções salariais, de impostos e de pensões não acrescentam nada aos 2,5 milhões de portugueses que vivem abaixo da linha de pobreza (os seus rendimentos, os que os têm, não sofreram cortes; ou são tão baixos, que nem IRS pagam; e continuará a ser-lhes impossível frequentar o restaurante). Nada se sabe, igualmente, sobre a composição desse Governo, apenas que é pouco provável a presença do BE e do PCP. E, nesse caso, fica-se sem saber como ultrapassará António Costa o "pecado original" de formar um Governo sustentado apenas entre militantes e simpatizantes socialistas. Ou seja, ministros de um partido que foi o principal derrotado das últimas eleições legislativas. Talvez a ausência de bloquistas e comunistas sossegue os mercados. Mas aumentará as dúvidas sobre o seu empenhamento na solução. O que não sossega os portugueses.