A entrevista do primeiro-ministro transmitida pela SIC nesta última terça-feira foi - tanto pelo que se afirmou como pelo que se omitiu - a mais flagrante demonstração do absoluto vazio político em que se transformou a vida democrática e a governação da República Portuguesa. O atual primeiro-ministro começou por conquistar a liderança do seu partido em 2010, com uma poderosa bandeira programática: a apresentação de uma proposta radical de revisão da Constituição. Sobre o Congresso de Carcavelos passaram já quatro anos. Entretanto, realizaram-se mais dois congressos, o PSD ganhou as eleições legislativas de 2011 e formou um Governo de coligação maioritário, em funções há três anos, mas nenhuma proposta de revisão constitucional deu entrada na Assembleia da República. Em vez disso, instalou-se uma grave querela constitucional, com vários diplomas legislativos que o Governo considerava como instrumentos essenciais para o cumprimento do seu programa, declarados inválidos por inconstitucionalidades várias, em sede de fiscalização pelo Tribunal Constitucional desencadeada por iniciativa do Presidente da República ou da Oposição.
Corpo do artigo
Como se poderá explicar que quem foi capaz de elaborar uma proposta inteira de revisão constitucional não tenha conseguido até hoje enunciar uma visão coerente de reforma do Estado, da administração territorial, do sistema político? Ou será que a reforma do Estado consistiu na redução do número de ministros - entretanto revista - na extinção dos governadores civis, no mapa judiciário, no agrupamento de freguesias, na asfixia financeira das Fundações do Museu e Parque do Côa e da Casa da Música, no Porto? Ou será que a reforma do Estado se resume a este empobrecimento generalizado, à degradação do trabalho e à desqualificação da cidadania? Deliberadamente, a nova maioria substituiu o debate institucional, transparente e democrático, inerente ao procedimento formal de revisão que tinha prometido, por uma estratégia de rutura constitucional dissimulada que transformou o "memorando de entendimento" com a troika e os insondáveis desígnios dos mercados, no seu cavalo de Troia. A reforma do Estado é a fórmula mágica que opera a metamorfose dos "cortes" extraordinários, de emergência, dos trabalhadores públicos, dos trabalhadores privados e dos reformados, em medidas estruturais e permanentes acordadas com os nossos credores. Por isso, o primeiro-ministro apenas cuidou dos números, deixando a respetiva explanação literária para melhor ocasião e por conta dos seus subordinados...
OParlamento Europeu, a Comissão, o Banco Central, grupos de estudo, outros governos nacionais e outras forças políticas, discutem hoje alternativas e apresentam projetos para compaginar o pacto orçamental com as exigências de solidariedade e desenvolvimento inscritas na matriz da construção europeia e única esperança da sua sobrevivência. Invariavelmente calado acerca de tais questões ao longo destes últimos três anos, o primeiro-ministro português limitou-se agora a remeter a oportunidade do seu tratamento para a campanha eleitoral do Parlamento Europeu!
Os prenúncios de guerra civil na Ucrânia são o problema mais grave e urgente que os europeus enfrentam neste momento. Não é assunto que apenas diga respeito aos povos vizinhos. É uma questão que diz respeito à própria União às suas instituições e a todos os estados-membros que estiveram intimamente envolvidos na eclosão do conflito e que são parceiros incontornáveis na procura de uma solução pacífica que quanto mais tardar mais difícil e improvável se tornará. O assunto, porém, também não mereceu sequer a mais breve menção. Portugal nada tem a dizer sobre as políticas de austeridade que flagelam o povo, nada tem a dizer sobre as reformas institucionais de que depende o seu destino que todavia pretendeu partilhar com os outros povos europeus. Portugal nada tem a dizer sobre as relações de boa vizinhança e as políticas de paz e direitos humanos que tanto prestígio internacional valeram à União, no passado. O Governo de Portugal nada tem a dizer porque verdadeiramente não existe!