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Assistimos esta semana ao regresso às alas da Assembleia da República. Na quarta-feira, os eleitos pelo povo reuniram-se no hemiciclo para falar. Foi um dia de muito trabalho porque, além de ser o dia da reunião plenária para falar dos incêndios, calhou no dia da audição dos peticionários "pelo fim do abate dos pintainhos machos em Portugal". Eu vi as duas sessões e posso-vos dizer que a audição pelos pintainhos machos foi muito mais esclarecedora que as três horas de luta de galos que aconteceu à mesma hora. O chinfrim na casa da democracia foi de tal ordem, que o preço por metro quadrado em São Bento baixou 70% na quarta-feira.
Eu não aconselho a irem ao site da ARTV e a assistirem àquilo, porque não sei como é que está a vossa saúde cardiovascular. Aquilo foi transmitido em direto depois do almoço, mas foi tão agressivo, que devia ter sido depois das 23, com bolinha vermelha no canto superior. Eu, ao fim das três horas, parecia um inglês que adormeceu na toalha, de tão vermelha que a minha cara estava da vergonha que senti. E é por isso que venho aqui contar-vos que se passou por lá. O resumo é: Ahhhhhhhhh! Foram só gritos.
Assim que o presidente da Assembleia da República dá o apito inicial, a bancada do partido de extrema-direita começou imediatamente a provocar, fazendo lembrar a equipa neozelandesa de râguebi, mas em vez de um haka fizeram um "hakaparvos, pá". Deputados todos coordenados, numa coreografia, a fazerem várias vezes o gesto de roubar para as outras bancadas, mostrando que não é à toa que são o partido mais popular no TikTok. O volume da sala também nos deu a oportunidade de ouvir o que os deputados desta bancada vão proferindo enquanto os outros falam, sejam os outros de que bancada forem. E ainda dizem que o Chega não é inclusivo. Coisas dignas da instituição da qual fazem parte, como "sabem que vão levar, ficam logo nervosos", "ele ainda pode, mas você tem de ter cuidado com a linha", "gentalha é o que vocês são" e o que achei mais graça de todos: "devias ter respeito". É um partido que, enquanto não consegue ficar ao leme do país, nos assegura-nos que pelo menos na lama já estamos.
A bancada do PS e do PSD, certamente a propósito do tema que os trouxe ali, tenta adotar a estratégia de combater fogo com fogo e arrisca falar de hambúrgueres, espasmos esofágicos e autarcas pirómanos. O líder do Chega passa-se da cabeça e começa aos gritos com "já vais ver, já vais ver". Nisto, o líder da bancada do PSD, Hugo Soares, faz queixas ao presidente da mesa do comportamento dos outros. Nisto, está tudo aos gritos no hemiciclo. Nisto, André Ventura sai-se com Paulo Pedroso. Nisto, Eurico Brilhante Dias começa a gritar "Helibravo! Helibravo!" Nisto, Ventura começa a falar da "coça" que o PS levou. Nisto, Hugo Soares alerta para o, e cito, "regabofe" que está para ali armado. Nisto, André Ventura começa a dizer que eles têm deputados que "gamam". Nisto, está tudo aos gritos. Nisto, André Ventura sai da sala. Nisto, Aguiar Branco tem um discurso sobre a urbanidade que é preciso ter. Nisto, Hugo Soares começa aos gritos a dizer "o deputado André Ventura está lá fora a provocar os imigrantes!". Nisto, começa a gritar com Aguiar Branco. Nisto, a bancada do Chega começa a gritar com o Hugo Soares. Nisto, Hugo Soares começa a fazer estalinhos com as mãos como quem vai pedir a conta para falar com a mesa da Assembleia. Nisto, Hugo Soares, que está de cabeça perdida, começa a ligar para a bancada do Chega enquanto grita "atende aí!, atende aí!". Nisto, Pedro Pinto faz queixas das coisas que Hugo Soares disse ao deputado Pedro Frazão. Nisto, Inês Sousa Real tenta falar dos incêndios. Nisto, João Almeida do CDS tenta falar dos incêndios e consegue uma palma do seu único colega de bancada Paulo Núncio. Nisto, Frazão diz ao PSD que devia sair da sala e deixar o Chega governar e ainda decide fazer pouco de um deputado do PSD por ter estado sozinho com uma mangueira a apagar o fogo que deflagrou à volta de sua casa. Nisto, toda a bancada do partido ri.
E foi muito isto. Para terem uma noção, o presidente da Assembleia da República, Aguiar Branco, começou a sessão plenária com o cabelo todo preto. Fiquei com a sensação de que esteve a um perdigoto de algum deputado do PSD ter calhado na bochecha de um deputado do Chega para São Bento ser o Parlamento da Sérvia e acabar tudo à mocada. O motivo pelo qual os deputados se reuniram ali foi para abordar a catástrofe dos incêndios que assolaram mais uma vez o país e, no final, foi o hemiciclo que pegou fogo.