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Aconteceu ler que Pablo Neruda, o poeta da beleza e do humanismo, teve uma filha chamada Malva Marina, fruto do primeiro casamento. Foi a sua única filha. Quando o bebé nasceu, Neruda dizia que se tratava de um “ser perfeitamente ridículo”, “um vampiro de três quilos”: não tarda nada, abandonou a criança e a mulher. Malva tinha hidrocefalia, era cega, nunca conseguiu andar - e morreu aos oito anos sem o pai.
A imoralidade de Neruda lembrou-me o heroísmo da Filipa, que fazia tostas-mistas com o queijo bem derretido, fundente, e levava o filho às costas numa capulana. Descansando nas costas da mãe, a cabeça muito redonda tinha dois olhos que não viam, dois ouvidos que não ouviam e uma boca que não falava.
Agarrado à mãe enquanto esta aspirava o chão, sentia-lhe os movimentos da faxina, os cheiros da casa e dos produtos de limpeza, o suor da mãe. E ia sorrindo enquanto dançavam os dois a dança de trabalhar.
A Filipa saiu de São Tomé para curar o filho incurável. Tinha outro filho, mas aquele pedia os hospitais portugueses, os tratamentos possíveis, talvez fisioterapia. Quando a Filipa o punha no chão do meu quarto, o rapaz de quatro anos nunca conseguia ficar de pé. De cócoras, agarrava-se às estantes e chorava pela mãe, que nem sempre conseguia trabalhar com o filho às costas. O corpo da mãe fazia parte dos sentidos do filho - quando a Filipa estava longe, ele chorava e embatia nos sofás e mordia os livros.
A Filipa trabalhou muito para ganhar muito para pagar a cura. Mas imagino que ela soubesse que seria sempre uma pequena cura de pequenos males.
Os gemidos da criança a chamar pela mãe pareciam uma canção, uma melodia doce em cheio na vulgaridade do dia-a-dia. A Filipa pegava no filho ao colo e heroicamente, rainha maternal - cheia de uma coragem que só algumas mulheres aprenderam, ela e a mãe da filha de Neruda e umas quantas outras -, antes de o restituir ao ninho da capulana, sorria-lhe sempre. O filho adormecia embalado e acabava-se a canção doce.
Mas em Portugal não se fizeram milagres, o rapaz continuou sem ver, sem ouvir e sem falar. A Filipa voltou com ele para São Tomé, onde tinha o outro filho. Não sei mais nada. Mas sei que foi para Filipa que os poetas cobardes e imorais como Neruda escreveram versos sobre a esperança, a valentia e o amor. E os belos poemas não lhe serviram de nada.
O autor escreve segundo a antiga ortografia