Foi a última vez que comprei um dicionário em papel, antes de me converter à comodidade de os ter sempre à mão, no iPhone, sem pesarem nem ocuparem espaço. O motivo foi de força maior. Andava a ler em Castelhano as aventuras do Pepe Carvalho, do Vázquez Montalbán, e nove em cada dez vezes o dicionário de bolso não satisfazia a minha curiosidade.
Corpo do artigo
Foi numa quinta, estava de folga, e depois de papar um filme no Arrábida, fiz as compras do mês, arrumei-as no carro, e voltei ao último piso para comprar na Almedina o dicionário Porto Editora de Espanhol.
Na caixa registadora, entreguei dicionário e cartão multibanco e a empregada perguntou-me se eu tinha cartão da Almedina, ao que lhe respondi que não e acrescentei uma pergunta: "Estou a perder alguma coisa por não o ter?".
Estava, disse-me ela. Se tivesse, depositavam-me no cartão 10% do valor da compra, quase três euros. A coisa soou-me atraente. Após assegurar-me de que o cartão era de borla e a sua emissão seria rápida e indolor, aderi ao programa de fidelização.
Na ficha de adesão, o capítulo da profissão era de escolha múltipla, mas da dúzia de ocupações sugeridas (professor, médico, advogado, etc.) não constava a de jornalista, pelo que eu, em vez de me portar bem e fazer a cruz no último quadrado, reservado à Outra (profissão, não namorada ou amante), armei-me em engraçadinho e fiz a cruz no quadradinho: Doméstico. Tinha acabado de fazer as compras...
Depois de meter os dados no computador, a empregada entregou--me o cartão e, após uma breve hesitação, disse-me: "O senhor é um achado". E, após uma pausa, legendou a afirmação: "Não há muitos homens assim, fiéis e domésticos".
Talvez por ser um achado, sei que a infidelidade é o pão nosso de cada dia e não é um fenómeno recente. Além de sábio, o rei Salomão também era insaciável, como o demonstra a Bíblia ao informar-nos que ele possuiu 700 mulheres e mantinha 300 concubinas.
Citando o Groucho Marx: o casamento é uma instituição maravilhosa, mas quem é que deseja viver numa instituição? Talvez por isso, há cada vez menos gente a casar-se, como é o caso do François Hollande, que pode não ser fiel, mas é seguramente um achado e chegou aos 59 anos solteiro, mas com uma vida sexual e sentimental bem preenchida. Quem diria que um tipo como ele, com cara de secretário de Estado, leva no currículo mulheres como a Ségolène, a Valérie Trierweiler e a Julie Gayet? Ando invejoso. Vai-se a ver e também teve um caso com a Fanny Ardant!
Podemos não ser todos uns achados, mas todos já fomos infiéis, em pensamentos, palavras (e atenção, pois em casos de divórcio, as quecas virtuais contam em tribunal como facadas no matrimónio!) e obras.
É por essas e por outras que prefiro a maneira tolerante como os franceses desdramatizam o assunto, encarando-o como uma comédia vaudeville, à hipocrisia americana (lembram-se do affaire Clinton/Lewinsky?) que se fundamenta na miserável tradição puritana de exigir às figuras públicas que providenciem ficcionais exemplos de virtude na sua vida privada.